Depois de já ter falado aqui sobre a teoria do poder terrestre de Mackinder e do domínio marítimo de Mahan, achei justo trazer à mesa outra visão sobre o equilíbrio de poder global: a teoria do Rimland. Spykman, geopolítico e acadêmico norte-americano, deu um tapa na cara das ideias de Mackinder ao dizer algo que, pensando bem, faz bastante sentido. Enquanto Mackinder argumentava que quem controlasse o “Heartland” (a região central da Eurásia) controlaria o mundo, Spykman foi além e praticamente respondeu: “Amigo, esquece o coração, é a borda que importa.” Foi assim que nasceu a ideia do Rimland – ou, como chamamos em bom português, a borda da ilha.
Nas minhas reflexões sobre geopolítica, sempre me pego pensando nas ideias que moldaram a forma como os grandes estrategistas enxergam o mundo. Já comentei aqui sobre teorias como o Heartland de Mackinder (você pode ler o texto aqui), aquela velha história de que quem domina o coração da Eurásia domina o mundo, e sobre a importância do domínio marítimo de Mahan (você pode ler o texto aqui). Mas hoje quero trazer uma perspectiva que de certa forma, complementa tudo isso, algo mais periférico — literalmente. Vamos falar do Rimland, a teoria de Nicholas Spykman, que, convenhamos, tinha um mapa mental bem diferente dos seus contemporâneos.
Você já ouviu falar do Rimland? A ideia é simples: para Spykman, o poder global não estava no controle do centro da Eurásia (o tal Heartland), mas nas áreas costeiras que circundam esse coração. Imagine o Heartland como um tabuleiro de xadrez. Spykman dizia que o jogo não era ganhar o centro do tabuleiro, mas controlar as bordas — o Rimland. Faz sentido, né? Afinal, é nas bordas que estão os portos, o comércio, os grandes fluxos de pessoas e mercadorias.
O Que é o Rimland?
Vamos destrinchar isso. O Rimland é, grosso modo, uma faixa que conecta a Europa Ocidental, passa pelo Oriente Médio, segue para o sul e sudeste asiático, até o leste da Ásia. É como o cinturão dinâmico que abraça a massa continental da Eurásia. Diferentemente de Mackinder, que acreditava na força bruta do interior continental, Spykman argumentava que o verdadeiro poder vinha do controle das bordas, onde a terra encontra o mar.
Ele dizia algo curioso: “Quem controla o Rimland, controla a Eurásia; quem controla a Eurásia, controla o destino do mundo.” Mas, na prática, isso se traduz em um foco estratégico nas zonas costeiras e nas rotas marítimas. É uma ideia que, confesso, parece fazer muito mais sentido no século XXI do que no início do século XX, especialmente quando pensamos no comércio globalizado e no papel dos oceanos.
Rimland e os Conflitos de 2024
Agora, você deve estar pensando: “Ok, mas como isso se conecta com os conflitos de hoje?” Ótima pergunta. Vamos dar uma olhada nas crises geopolíticas recentes e ver como o Rimland continua sendo o palco principal.
1. A Ucrânia e a Estratégia Costeira
O conflito na Ucrânia tem muito a ver com essa lógica do Rimland. A Crimeia, anexada pela Rússia em 2014, é um exemplo perfeito (já escrevemos sobre a independência da Ucrânia aqui). Não é apenas uma questão territorial; é sobre controle estratégico. A Crimeia dá à Rússia acesso direto ao Mar Negro, uma das rotas cruciais do Rimland. Hoje, em 2024, a luta pela costa ucraniana e pelo controle dos portos no sul do país continua sendo um ponto de tensão no conflito. A Rússia entende que sem essas rotas marítimas, sua influência regional fica seriamente limitada.
2. O Indo-Pacífico: O Verdadeiro Campo de Batalha
Se há um lugar onde a teoria do Rimland parece estar mais viva do que nunca, é na região Indo-Pacífica. O Mar da China Meridional é, literalmente, um tabuleiro de xadrez do Rimland (já escrevemos sobre isso aqui). A China constrói ilhas artificiais e militariza a região para controlar essas rotas marítimas essenciais (já escrevemos sobre a importância das rotas marítimas aqui). Ao mesmo tempo, os Estados Unidos, aliados a países como Japão, Austrália e Índia, tentam contrabalançar essa influência.
Pense nisso: mais de 30% do comércio mundial passa pelo Mar da China Meridional. É uma área onde terra e mar colidem em um jogo de poder constante. Spykman, se estivesse vivo, provavelmente estaria apontando para um mapa dessa região e dizendo: “Eu avisei.”
3. O Oriente Médio e a Rota da Energia
Outro exemplo é o Oriente Médio, parte central do Rimland, onde as rotas de energia continuam a ser motivo de disputa. O Estreito de Ormuz, por onde passa uma grande parte do petróleo mundial, é um ponto nevrálgico. Qualquer desestabilização ali afeta todo o sistema global. E, veja só, Spykman já antecipava que o Rimland não era só geografia, mas também um conceito econômico.
É Possível Ignorar o Rimland?
Pense comigo: se as principais potências globais estão obcecadas com as áreas que Spykman considerava cruciais, será que alguém realmente conseguiu ignorar essa teoria? Hoje, parece que a geopolítica global é um grande “reality show” do Rimland. A OTAN está expandindo sua presença no leste europeu; a China fortalece sua marinha no Pacífico; os Estados Unidos continuam espalhando bases ao longo do cinturão asiático.
Mas, será que a obsessão pelo Rimland não nos faz esquecer outras dinâmicas? Mackinder estava errado em focar só no Heartland, mas será que Spykman não subestimou o poder das alianças tecnológicas e econômicas que transcendem os limites geográficos? Hoje, a disputa por dados e inteligência artificial parece estar reformulando as regras do jogo.
O Que Diz o Direito Internacional?
Agora, vamos pensar na camada jurídica dessa história. O Rimland, como espaço de disputa, levanta inúmeras questões no direito internacional. O caso do Mar da China Meridional é emblemático. A Corte Permanente de Arbitragem decidiu, em 2016, que as reivindicações territoriais da China eram ilegais sob a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS). Mas, na prática, quem vai lá forçar a China a obedecer?
Aqui está o paradoxo do Rimland: é um espaço onde as leis internacionais frequentemente colidem com as realidades do poder. E, sinceramente, isso só reforça a ideia de Spykman de que quem controla essas zonas costeiras não apenas molda a geografia, mas também as regras do jogo.
Pensar no Rimland em 2024 é quase como assistir a uma reprise de um filme, só que com tecnologia melhor e armas mais sofisticadas. A teoria de Spykman continua sendo relevante porque, no fundo, ela é uma forma de entender como o poder flui pelo mundo.
A teoria da borda da ilha de Spykman pode ter sido criada no século passado, mas ela é tão relevante hoje quanto na época em que foi concebida. O Rimland não é apenas um conceito teórico, mas uma realidade viva que vemos nas manchetes diárias.
Fontes: Nicholas J. Spykman – Wikipédia, a enciclopédia livre / Geopolítica: Teorias do Heartland e do Rimland – UOL Educação / A influência de Nicholas Spykman nas relações contemporâneas entre EUA e Rússia: uma análise sobre a importância geopolítica da Ucrânia