Você já ouviu falar da teoria do Heartland ou no português algo do tipo ‘Coração da Terra’? Essa teoria, proposta no início do século XX pelo geógrafo britânico Halford Mackinder, é uma das ideias mais conhecidas da geopolítica. Ela sugere que o controle de uma região central no mundo, o “Heartland”, seria a chave para dominar o planeta. Mas será que essa visão, desenvolvida em um período de impérios e rivalidades coloniais, ainda faz sentido no mundo moderno? Vamos explorar essa ideia e analisar como ela pode ser interpretada no contexto atual.
O que é a Teoria do Heartland?
A teoria do Heartland foi apresentada por Mackinder em 1904, em seu famoso ensaio “The Geographical Pivot of History”. Em essência, Mackinder argumentava que a chave para o poder global estava no controle da Eurásia, especificamente na região central desse imenso continente, que ele chamou de “Heartland”. Essa área, que inclui partes da Rússia, Europa Oriental e Ásia Central, seria, segundo ele, uma fortaleza natural. Quem controlasse o Heartland, teria uma vantagem estratégica sobre o resto do mundo.
A ideia de Mackinder era simples, mas poderosa: “Quem governa o Leste Europeu comanda o Heartland. Quem governa o Heartland comanda a Ilha-Mundo. Quem governa a Ilha-Mundo comanda o mundo.” Mas o que ele queria dizer com isso?
Mackinder enxergava o mundo como dividido entre três grandes áreas: a Ilha-Mundo (que seria a Eurásia e a África), as Ilhas Marginais (como o Reino Unido e o Japão) e o resto do mundo. No centro da Ilha-Mundo estava o Heartland, uma região vasta e de difícil acesso por mar, o que a tornava menos vulnerável a invasões marítimas, comuns naquela época. A partir dessa base sólida, um poder terrestre poderia expandir sua influência para dominar o restante da Ilha-Mundo e, por fim, o globo.
Será que essa teoria faz sentido hoje?
Ao ler Mackinder, fico me perguntando: será que, em pleno século XXI, essa ideia de controle territorial ainda tem tanto peso? Vivemos em um mundo interconectado, onde a tecnologia e o poder econômico muitas vezes parecem mais importantes do que o controle físico de uma região. Pensemos, por exemplo, no impacto das grandes corporações digitais ou na influência que países como os Estados Unidos exercem em grande parte do mundo sem ocupar fisicamente territórios. Isso faz a teoria do Heartland parecer um tanto ultrapassada.
Por outro lado, se olharmos para alguns dos conflitos mais recentes e para as tensões globais, talvez a ideia de Mackinder ainda ressoe em certos aspectos. A Rússia, que sempre esteve no coração da teoria de Mackinder, continua a desempenhar um papel central na geopolítica. A invasão da Ucrânia em 2014 que resultou na anexação da Crimeia demonstram um interesse contínuo em manter controle sobre o leste europeu, justamente a região que Mackinder apontou como estratégica. Sem mencionar a atual invasão e tentativa de anexar várias outras regiões da Ucrânia, que iniciou em 2022. Será que a Rússia ainda segue, consciente ou inconscientemente, a lógica do Heartland?
O Heartland (ilha mundo) no Século XXI
Outro ponto que me faz refletir é o crescente interesse da China em se expandir na Ásia Central, particularmente através de iniciativas como a Nova Rota da Seda, também conhecida como Belt and Road Initiative. Esse projeto tem como objetivo criar um vasto corredor econômico que conecte a China a várias regiões da Ásia, Europa e África. Curiosamente, grande parte dessa iniciativa passa exatamente pelo Heartland de Mackinder. Será que a China está tentando seguir uma versão modernizada da teoria do Heartland?
Além disso, a rivalidade entre os Estados Unidos e a China, que muitos analistas classificam como a nova “Guerra Fria”, tem uma dimensão geopolítica interessante. Os EUA, tradicionalmente uma potência marítima, continuam a manter uma presença forte nas “Ilhas Marginais” de Mackinder, como Japão, Coreia do Sul e o Reino Unido. Enquanto isso, a China está cada vez mais expandindo sua influência pelo interior da Ásia e até pela África, que Mackinder via como parte da Ilha-Mundo.
Outra implicação moderna da teoria de Mackinder pode ser vista no interesse crescente pelas regiões árticas, uma área adjacente ao Heartland, onde tanto Rússia quanto potências ocidentais buscam controlar rotas comerciais e recursos naturais à medida que as calotas polares derretem.
Será que ainda estamos vivendo essa disputa entre potências terrestres e marítimas, como Mackinder previu? Se considerarmos as rotas comerciais, as alianças militares e os interesses geopolíticos das grandes potências, pode-se argumentar que, mesmo em um mundo digital, o controle de territórios estratégicos continua sendo importante.
O Direito Internacional e a Luta pelo Heartland (Coração da Terra)
Mas, se a teoria de Mackinder ainda faz sentido de alguma forma, como ela se encaixa no contexto do direito internacional moderno? Hoje, vivemos em um mundo onde as fronteiras e a soberania nacional são protegidas por normas e tratados internacionais. O conceito de “conquista territorial” está, ao menos formalmente, fora de moda. No entanto, a competição por influência e poder ainda existe – ela apenas tomou novas formas.
Um exemplo claro é a anexação da Crimeia pela Rússia, que desafia diretamente os princípios do direito internacional e da integridade territorial. Isso mostra que, embora a conquista direta de territórios seja cada vez mais rara, as potências ainda estão dispostas a desafiar as regras internacionais para garantir o controle de regiões estratégicas.
Outro ponto interessante é como o controle de recursos naturais continua a ser uma motivação para a competição geopolítica. A região do Heartland possui vastas reservas de petróleo, gás e minerais essenciais, o que a torna ainda mais relevante no contexto moderno. As tensões em torno de oleodutos e gasodutos que cruzam a Eurásia, por exemplo, refletem uma disputa pelo controle de rotas energéticas vitais.
Ao refletir sobre a teoria do Heartland de Mackinder, percebo que, embora o mundo tenha mudado profundamente desde 1904, alguns elementos centrais de sua visão permanecem relevantes. A luta pelo controle de regiões estratégicas, seja no leste europeu ou na Ásia Central, ainda molda a geopolítica global. No entanto, hoje essa competição é mediada não apenas pelo poder militar, mas também por influências econômicas, tecnológicas e diplomáticas.
Será que Mackinder teria previsto que, mais de um século depois, sua teoria ainda seria discutida? Ou será que ele ficaria surpreso ao ver como o poder mudou de forma, mas não de essência? Enquanto refletimos sobre a teoria do Heartland, é importante questionar: até que ponto o controle territorial ainda define o poder global? E, mais importante, como essas disputas continuarão a moldar o futuro das relações internacionais?