Você já teve aquela sensação de que, no mundo do desenvolvimento econômico, existem algumas “regras” que parecem não se aplicar a quem está no topo? Como se os países ricos tivessem chegado lá jogando de um jeito e, de repente, quisessem mudar o jogo? É exatamente essa ideia que Ha-Joon Chang explora em seu provocativo livro “Chutando a Escada: A Estratégia do Desenvolvimento em Perspectiva”.
O título por si só já é uma metáfora brilhante. Imagine uma escada que leva ao sucesso. Quem chega lá em cima decide chutá-la para que ninguém mais consiga subir. É assim que Chang descreve as práticas das nações mais desenvolvidas ao longo da história, e o melhor de tudo é que ele faz isso com fatos e números na mão.
Ler o livro de Chang foi uma experiência que me surpreendeu e me fez enxergar o desenvolvimento econômico por outro ângulo. O livro traz uma análise profunda e provocativa sobre o desenvolvimento econômico dos países, desafiando algumas das ideias mais difundidas no meio acadêmico. O que torna essa leitura mais interessante é como Chang, com sua clareza e riqueza de detalhes, expõe as contradições históricas de muitas das políticas econômicas defendidas pelos países hoje desenvolvidos.
No campo da economia, existe um embate permanente entre diferentes escolas de pensamento. Em questões de desenvolvimento, o debate se intensifica, especialmente entre visões ortodoxas e heterodoxas. Para quem não está familiarizado, vou explicar brevemente.
A visão ortodoxa – muitas vezes associada ao pensamento econômico neoclássico – enfatiza a importância de mercados livres, pouca intervenção do Estado e integração com o mercado global como motores do crescimento econômico. Nessa perspectiva, a concorrência e a eficiência são vistas como fundamentais para impulsionar o desenvolvimento.
Por outro lado, a visão heterodoxa tende a questionar essa abordagem. Economistas heterodoxos frequentemente defendem que o papel do Estado é indispensável para corrigir desigualdades, proteger indústrias nascentes e criar políticas de longo prazo que estimulem o desenvolvimento industrial e tecnológico.
O interessante desse debate é que, enquanto a visão ortodoxa é mais dominante em organismos como o FMI ou o Banco Mundial, a heterodoxia ganha força ao olhar para casos históricos específicos, como o desenvolvimento da Coreia do Sul (já escrevemos sobre isso aqui) ou mesmo o próprio Brasil durante certos períodos.
E aqui entra Ha-Joon Chang. Ele é um economista sul-coreano, especializado em economia do desenvolvimento, e atualmente é membro do Departamento de Política Econômica do Desenvolvimento na Universidade de Cambridge. Para quem não o conhece, Chang é conhecido por seu estilo provocador e por questionar abertamente os “dogmas” do livre mercado.
Eu, particularmente, gosto de mergulhar nas duas perspectivas – a ortodoxa e a heterodoxa. Acho interessante como cada lado interpreta os mesmos fatos de maneiras tão diferentes. Essa visão plural me ajuda a entender melhor o mundo e a trazer reflexões que podem fazer sentido para quem também busca entender as engrenagens do desenvolvimento econômico. E é isso que me move a escrever sobre Chutando a Escada e a questionar: estamos subindo a escada ou ela já foi chutada?
Como os Países Ricos Realmente Ficaram Ricos?
A primeira pergunta que me veio à cabeça ao ler o livro foi: será que realmente existe um padrão único para o sucesso econômico? A resposta, segundo Chang, é um sonoro “não”. Ele começa desmontando a ideia de que os países ricos sempre foram exemplos de livre mercado e competição. Pelo contrário, eles usaram protecionismo e intervenção estatal como alavancas para crescer.
Pegue o exemplo da Inglaterra, um país que muitos associam ao liberalismo econômico. Durante os séculos XVIII e XIX, a Inglaterra adotou políticas extremamente protecionistas para proteger suas indústrias nascente. A famosa Lei dos Cereais (Corn Laws) limitava a importação de grãos para proteger os agricultores locais. E os Estados Unidos? O berço do capitalismo moderno passou boa parte do século XIX com tarifas altíssimas para proteger sua indústria. Será que foi coincidência que essas economias decolaram nesse período?
O Desenvolvimento é um Jogo de Cartas Marcadas?
Outro ponto que me chamou a atenção foi como os países ricos pressionam os mais pobres a adotarem políticas industriais pré determinadas para suas economias. A ideia é simples: “abram seus mercados, reduzam tarifas, privatizem tudo e deixem o mercado agir.”
Chang mostra que não funciona assim. Ele dá exemplos de países que seguiram fielmente essa cartilha e acabaram com economias estagnadas e dependentes de exportação de matérias-primas. Isso te soa familiar?
E então você se pergunta: se essas políticas não funcionaram para quem está no topo, por que funcionariam para quem está tentando subir? É como entregar uma receita de bolo onde o ingrediente principal está faltando e ainda dizer: “Se você não conseguir, a culpa é sua.”
E o Brasil?
Ao pensar no Brasil dentro da análise de Ha-Joon Chang, é impossível não traçar paralelos entre as estratégias de desenvolvimento discutidas no livro e a trajetória econômica do país. Será que também tentamos subir a “escada” do desenvolvimento? Ou será que nos fizeram acreditar que ela já não estava mais disponível?
A história econômica do Brasil é marcada por momentos de forte intervenção estatal e políticas industriais que lembram os exemplos de sucesso citados por Chang. No entanto, em outras ocasiões, o país seguiu a cartilha liberal imposta pelas potências internacionais, com resultados, no mínimo, questionáveis. Então, onde estamos nessa narrativa de “escada chutada”?
A Era Vargas e a Industrialização por Substituição de Importações
Voltemos ao início do século XX, quando o Brasil começou a dar seus primeiros passos rumo à industrialização. Durante o governo de Getúlio Vargas (1930-1945), o país adotou políticas de substituição de importações como forma de construir uma base industrial. Essa estratégia era, essencialmente, protecionista: o Brasil impôs tarifas elevadas sobre produtos importados e investiu na criação de indústrias nacionais em setores estratégicos, como siderurgia, energia e transporte.
O exemplo mais icônico desse período é a criação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em 1941. Com apoio estatal massivo e financiamento dos Estados Unidos em troca do uso de bases militares brasileiras durante a Segunda Guerra Mundial, a CSN foi um marco na industrialização do país. Essa estratégia é exatamente o que Ha-Joon Chang aponta como o caminho seguido por países como os Estados Unidos e a Inglaterra em seus primeiros passos rumo ao desenvolvimento.
Mas será que o Brasil teve a mesma sorte? A resposta é: em parte. Apesar do avanço industrial, a dependência de capital externo e a falta de uma política consistente de longo prazo tornaram o processo menos robusto do que em outros países. Ainda assim, o período Vargas é lembrado como um momento em que o Brasil tentou construir sua própria escada.
O Período Militar e o “Milagre Econômico”
Outro momento marcante foi durante o regime militar (1964-1985), especialmente nos anos do chamado “milagre econômico” (1968-1973). O governo investiu pesadamente em infraestrutura, energia e indústrias de base. Projetos como a construção da usina hidrelétrica de Itaipu e o desenvolvimento da indústria automobilística demonstram que o Estado era o grande motor do crescimento econômico.
A dependência de empréstimos internacionais criou uma vulnerabilidade que explodiu na crise da dívida dos anos 1980. É aqui que começamos a ver um paralelo com o que Chang discute: o Brasil tentou subir a escada, mas enfrentou barreiras impostas pelo sistema global. Com a crise da dívida, veio a imposição de políticas de ajuste estrutural por instituições como o FMI e o Banco Mundial.
O Neoliberalismo e a Globalização nos Anos 1990
Nos anos 1990, o Brasil abraçou de vez a cartilha intitulada “neoliberal”. Durante os governos de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, o país adotou políticas de abertura comercial, privatizações e redução do papel do Estado na economia. A ideia era integrar o Brasil ao mercado global e atrair investimentos estrangeiros.
Os resultados foram mistos. Por um lado, houve avanços na estabilização da economia, como o Plano Real, que controlou a hiperinflação. Por outro, a desindustrialização se tornou um problema crescente. Com a abertura econômica, muitas indústrias nacionais não conseguiram competir com os produtos importados. A promessa de que o livre mercado impulsionaria o desenvolvimento não se concretizou para todos os setores.
E aqui está o ponto central de Ha-Joon Chang: ao adotar as regras do jogo impostas pelos países ricos, o Brasil abriu mão de ferramentas que poderiam ter sido fundamentais para fortalecer sua base industrial. A escada que ajudou os países ricos a crescer foi chutada, e o Brasil foi forçado a jogar um jogo em desvantagem.
E Hoje?
Nossa economia depende fortemente da exportação de commodities como soja, minério de ferro e petróleo. Esses produtos são importantes, mas não geram o mesmo valor agregado que as indústrias de alta tecnologia que predominam nos países desenvolvidos. Estamos presos no que muitos economistas chamam de “armadilha da renda média” (já escrevemos sobre isso aqui), sem conseguir dar o salto para uma economia mais sofisticada.
Alguns acordos de livre comércio e normas de propriedade intelectual muitas vezes favorecem as economias mais fortes, enquanto restringem a capacidade do Brasil de desenvolver suas próprias indústrias. E, ao mesmo tempo, o país enfrenta desafios internos, como desigualdade social, instabilidade política e uma infraestrutura defasada (já escrevemos sobre isso aqui).
Não existe uma receita única para o desenvolvimento, mas é claro que o Brasil precisa de políticas que olhem para o futuro com mais autonomia e estratégia. Afinal, ninguém vai nos entregar uma escada de presente. Se quisermos subir, teremos que construir a nossa – e garantir que ela esteja bem firme.
A Escada Está Mesmo Chutada?
O ponto central do livro, para mim, é que as nações desenvolvidas não apenas chutaram a escada, mas fizeram questão de garantir que ninguém mais a construa. Por meio de acordos comerciais, regras de propriedade intelectual, a “guerra fria” atual que envolve tecnologia/conhecimento e pressão política, elas criaram um sistema onde é quase impossível competir em igualdade de condições (ja escrevemos sobre a guerra do desenvolvimento aqui).
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Ou pode ler a versão online aqui: Chutando a Escada: estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica
Fontes: Kicking Away the Ladder: The “Real” History of Free Trade – FPIF / Ha-Joon Chang – Wikipédia