A Divisão no Islã

Sempre que observo o cenário geopolítico atual do Oriente Médio, fica claro que muito do que vemos hoje está enraizado em divisões antigas, muitas vezes religiosas. Uma das mais profundas e duradouras é a divisão no Islã entre sunitas e xiitas. Embora ambos os grupos compartilhem os princípios fundamentais da fé islâmica, essa divisão gerou diferenças que influenciam não só o comportamento religioso, mas também as relações políticas e sociais entre países e comunidades islâmicas. Mas afinal, de onde vem essa divisão? E como ela afeta o mundo de hoje?

O Surgimento da Divisão: Uma Questão de Sucessão

Essa divisão remonta ao século VII, logo após a morte do profeta Maomé, em 632 d.C. O ponto de discórdia estava em uma questão essencial: quem deveria suceder Maomé como líder da comunidade islâmica? Esse é o momento em que as visões divergentes surgiram.

Um grupo, que mais tarde viria a ser conhecido como sunitas, acreditava que o novo líder deveria ser escolhido entre os seguidores mais próximos de Maomé, independentemente de laços familiares. Eles apoiaram Abu Bakr, um dos companheiros do profeta, que acabou sendo o primeiro califa.

O outro grupo, os xiitas, defendia que a sucessão deveria ficar na linhagem familiar de Maomé, e apoiavam Ali, primo e genro do profeta, como o líder legítimo. Essa diferença sobre a sucessão não era apenas uma questão de liderança política, mas também uma questão de autoridade religiosa e moral, que acabou moldando as duas vertentes.

Quem São os Sunitas e os Xiitas Hoje?

Hoje, os sunitas representam a esmagadora maioria dos muçulmanos no mundo, cerca de 85% a 90%. Eles são predominantes em países como Arábia Saudita, Egito, Turquia, Indonésia, Paquistão e muitos outros. O Islã sunita é mais diversificado, com uma variedade de interpretações e escolas de pensamento, mas, em geral, eles seguem uma tradição que dá grande ênfase à comunidade como um todo e à adesão aos ensinamentos do profeta Maomé.

Os xiitas, por outro lado, representam entre 10% e 15% dos muçulmanos. Sua maior concentração está no Irã, que é o principal país xiita do mundo, além de serem maioria no Iraque e no Bahrein, e possuírem uma comunidade significativa no Líbano (com o grupo Hezbollah). O Islã xiita é caracterizado pela reverência a uma linhagem de líderes religiosos chamados “imames”, que são considerados guias espirituais infalíveis.

Mas por que essa divisão, que começou como uma disputa de sucessão, se tornou tão politicamente carregada?

Arábia Saudita: O Berço do Islã Sunita

A Arábia Saudita é o país mais influente dentro do Islã sunita e ocupa um papel central no mundo islâmico. O motivo é simples: é o berço do Islã, onde estão localizadas as duas cidades mais sagradas para os muçulmanos, Meca e Medina. A cada ano, milhões de muçulmanos de todo o mundo realizam a peregrinação a Meca, conhecida como Hajj, um dos cinco pilares da fé islâmica.

A Arábia Saudita segue uma interpretação rígida do Islã sunita, conhecida como Wahhabismo, que é uma forma ultraconservadora da religião. O Wahhabismo, adotado oficialmente pelo governo saudita, molda não apenas a vida cotidiana no país, mas também suas relações com outras nações islâmicas. A Arábia Saudita vê a si mesma como a guardiã do Islã sunita, e por isso, investe pesadamente em promover essa versão do Islã em várias partes do mundo, seja construindo mesquitas ou financiando grupos religiosos.

Geopoliticamente, a Arábia Saudita usa sua influência religiosa e seu poder econômico, proveniente de suas vastas reservas de petróleo, para fortalecer sua posição no mundo islâmico. O país se posiciona como um defensor do mundo sunita, principalmente em oposição ao Irã xiita, com quem trava uma disputa pela supremacia regional. O apoio saudita a governos e grupos sunitas, como no Iêmen, na Síria e no Líbano, faz parte de sua estratégia de conter a influência do Irã e se manter como a principal força no Oriente Médio.

Mas até que ponto a Arábia Saudita, com seu rígido wahhabismo, consegue representar toda a diversidade do Islã sunita? Essa é uma pergunta que surge frequentemente nas discussões sobre o papel do país na política islâmica.

Irã: O Coração do Islã Xiita

Por outro lado, o Irã é o principal defensor e representante do Islã xiita no mundo. Desde a Revolução Islâmica de 1979, o Irã transformou-se em uma República Islâmica, onde o poder religioso e o poder político estão profundamente entrelaçados. A liderança do país está nas mãos do Ayatollah, um título dado aos líderes religiosos de alto escalão, que têm a palavra final em todas as questões importantes do país.

O Islã xiita no Irã é baseado em uma visão messiânica e hierárquica, onde os imames, descendentes diretos de Maomé, são vistos como guias espirituais infalíveis. A crença na vinda de um messias (o Imã Mahdi), que restaurará a justiça e a paz no mundo, é um dos pilares do xiismo. Essa visão espiritual se mistura com as ambições políticas do Irã, que busca exportar sua revolução islâmica e aumentar sua influência entre os países de maioria xiita e em regiões onde existem comunidades xiitas significativas.

Geopoliticamente, o Irã se posiciona como o principal adversário da Arábia Saudita, e seu apoio a grupos xiitas em países como Iraque, Síria, Líbano (com o Hezbollah) e Iêmen (com os houthis) faz parte de sua estratégia para desafiar a hegemonia saudita na região. O Irã usa tanto sua autoridade religiosa quanto seu poder militar (através da Guarda Revolucionária Islâmica) para influenciar eventos regionais e globais.

O que é interessante observar é como o Irã, apesar de ser uma potência isolada no mundo islâmico, conseguiu expandir sua influência em várias frentes. Mas será que essa expansão é sustentável no longo prazo, ou o país corre o risco de enfrentar uma oposição mais forte tanto externa quanto internamente?

A Geopolítica da Divisão: Rivalidades no Oriente Médio

A rivalidade entre sunitas e xiitas não é apenas religiosa, mas também profundamente geopolítica. No coração dessa disputa estão dois dos países mais poderosos do Oriente Médio: Arábia Saudita (sunita) e Irã (xiita). Essas duas nações, além de representarem as duas vertentes do Islã, competem por influência na região, muitas vezes apoiando lados opostos em conflitos e questões regionais.

Essa divisão, no entanto, não afeta apenas a Arábia Saudita e o Irã. Outros países influentes também se veem envolvidos em disputas geopolíticas que seguem essa linha sectária:

  • Egito: O Egito é o país mais populoso do mundo árabe e também um dos mais influentes no Islã sunita. A Universidade de Al-Azhar, no Cairo, é uma das mais respeitadas instituições teológicas do Islã sunita, e tem grande peso nas interpretações religiosas. O Egito, por sua posição geopolítica e histórica, muitas vezes adota um papel de mediador nas disputas regionais, tentando equilibrar suas relações tanto com a Arábia Saudita quanto com outros atores sunitas. No entanto, o Egito também se opõe ao crescimento da influência xiita do Irã, especialmente após os tumultuados eventos da Primavera Árabe.

  • Síria: O regime de Bashar al-Assad, que é alauíta (uma ramificação do xiismo), tem o apoio do Irã, enquanto grupos rebeldes sunitas são apoiados por países como a Arábia Saudita, Turquia e Catar. O conflito na Síria, que começou como um levante popular, rapidamente se tornou um campo de batalha para essa rivalidade entre sunitas e xiitas, com os principais atores regionais envolvidos em um verdadeiro jogo de poder.

  • Iraque: Depois da queda de Saddam Hussein (um sunita que governava um país de maioria xiita), o Iraque se tornou uma peça central nessa disputa. O governo do país, agora dominado por xiitas, tem laços profundos com o Irã, o que preocupa a Arábia Saudita e outros países sunitas. O Iraque é um campo de batalha diplomático e militar constante, onde a rivalidade entre as duas vertentes do Islã se manifesta em conflitos sectários e na luta pela influência política e econômica.

  • Iêmen: No Iêmen, a guerra civil reflete essa rivalidade. O Irã apoia os rebeldes houthis, que são xiitas, enquanto a Arábia Saudita lidera uma coalizão militar que apoia o governo sunita. Essa guerra, que começou como um conflito local, rapidamente se internacionalizou e se tornou uma verdadeira guerra por procuração entre Irã e Arábia Saudita.

  • Turquia: A Turquia, que também é de maioria sunita, se destaca por seu papel de potência regional com ambições geopolíticas claras. Sob o governo de Recep Tayyip Erdoğan, a Turquia busca aumentar sua influência no Oriente Médio e no mundo muçulmano em geral, apresentando-se como uma alternativa às lideranças tradicionais da Arábia Saudita e do Egito. Apesar de ser sunita, a Turquia tem uma abordagem mais pragmática e não se alinha rigidamente com o wahhabismo saudita. A sua participação nos conflitos na Síria e no Iraque mostra que, além de questões religiosas, os interesses geopolíticos muitas vezes falam mais alto.

  • Líbano e Hezbollah: No Líbano, o grupo xiita Hezbollah, fortemente apoiado pelo Irã, é uma das principais forças políticas e militares. O Hezbollah (você pode ler mais sobre o grupo paramilitar aqui) não só defende os interesses xiitas no Líbano, mas também serve como um braço do Irã na expansão de sua influência em toda a região, especialmente em sua luta contra Israel e em seu apoio ao regime de Bashar al-Assad na Síria.

Cada um desses conflitos tem suas raízes em questões locais e regionais, mas a divisão sunita-xiita exacerba as tensões. É uma disputa por poder, influência e controle no Oriente Médio, mas que usa a religião como uma bandeira.

E o Direito Internacional? O Que Está em Jogo?

Aqui entra uma questão: como o direito internacional lida com essas rivalidades que, embora muitas vezes locais, têm implicações globais? As intervenções estrangeiras em conflitos internos – como na Síria e no Iêmen – levantam questões sobre soberania e a legalidade dessas ações.

A guerra por procuração (você pode ler mais sobre esse tipo de conflitos aqui) entre Arábia Saudita e Irã, por exemplo, tem levado a uma série de violações do direito humanitário internacional, especialmente no caso do Iêmen, onde a situação humanitária é desastrosa. A incapacidade da comunidade internacional de intervir de forma eficaz e a ambiguidade jurídica sobre o que é considerado uma intervenção legítima ou não, apenas prolonga esses conflitos.

Outro ponto de reflexão é: até que ponto as Nações Unidas e outras entidades internacionais têm poder real para mediar em uma disputa tão profundamente enraizada em identidades religiosas e culturais? Será que o direito internacional consegue, de fato, lidar com essas rivalidades complexas, ou acaba sendo insuficiente?

Ao final dessa análise, o que fica claro é que a divisão entre sunitas e xiitas, que começou há mais de 1.400 anos, continua a moldar o Oriente Médio e suas dinâmicas políticas. O que começou como uma disputa sobre quem deveria liderar a comunidade islâmica após a morte de Maomé se transformou em uma das rivalidades mais complexas e politicamente relevantes do mundo moderno.

Mas será que essas diferenças religiosas por si só são suficientes para justificar tantos conflitos e tensões? Ou será que são as questões de poder e controle geopolítico que verdadeiramente movem essa engrenagem? É algo para refletirmos.

O Islã, como qualquer religião, não é monolítico, e a maneira como as divisões internas são usadas para fins políticos continua a ser uma parte essencial da história e do presente. Ao olharmos para o futuro, devemos questionar até que ponto essas diferenças continuarão a moldar as relações internacionais, e se haverá espaço para a superação dessas rivalidades em nome de uma paz duradoura.

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