Nos últimos anos, tenho observado com crescente preocupação uma estratégia que grandes nações têm utilizado para projetar poder e influência no cenário global: a guerra por procuração. Este fenômeno, que muitos podem não perceber à primeira vista, envolve o uso de forças locais, grupos insurgentes ou milícias para lutar em conflitos que, em última análise, servem aos interesses das potências envolvidas, sem que estas precisem se envolver diretamente. É uma prática que se tornou comum nas últimas décadas, especialmente em conflitos no Oriente Médio, na África e em algumas partes da Ásia.
A guerra por procuração é uma realidade que, há muito tempo, molda as dinâmicas globais de poder. Em minha análise, vejo esse fenômeno como uma manifestação sutil, porém devastadora, das rivalidades entre grandes nações, que preferem evitar um confronto direto, optando por atuar nos bastidores de conflitos regionais e civis.
Historicamente, as grandes potências sempre utilizaram estratégias indiretas para alcançar seus objetivos geopolíticos. Hoje, no entanto, essa prática atingiu uma nova dimensão. Não se trata mais apenas de fornecer armas e suporte financeiro a grupos aliados, mas de envolver nações inteiras em redes de influência, manipulando seus destinos em prol de interesses maiores.
O Que é a Guerra Por Procuração?
A guerra por procuração, ou “proxy war” no termo original em inglês, ocorre quando uma nação poderosa apoia militar, financeira ou logisticamente grupos armados ou governos estrangeiros, que lutam em nome dessa nação. Esse apoio pode incluir desde o fornecimento de armas e treinamento até apoio diplomático e financeiro. O objetivo é avançar os interesses estratégicos do país patrocinador, sem correr os riscos e custos políticos de um envolvimento direto.
Este tipo de conflito não é exatamente novo, mas sua prevalência parece ter aumentado na era moderna. A Guerra Fria, por exemplo, foi marcada por diversas guerras terceirizadas, onde Estados Unidos e União Soviética apoiaram lados opostos em conflitos como a Guerra do Vietnã, a Guerra da Coreia e as lutas pela independência em várias colônias africanas.
Exemplos Recentes de Guerra Por Procuração
Nos últimos 20 anos, podemos ver claros exemplos de guerra terceirizada em várias partes do mundo:
Síria: Desde 2011, a Síria tem sido palco de uma das guerras terceirizadas mais complexas e devastadoras dos tempos modernos. O conflito, que começou como uma revolta popular contra o governo de Bashar al-Assad, rapidamente se transformou em um campo de batalha onde várias potências estrangeiras têm apoiado diferentes lados. Rússia e Irã têm dado suporte ao regime de Assad, enquanto os Estados Unidos, a Turquia e alguns países do Golfo Pérsico apoiaram várias facções opositoras. Essa multiplicidade de interesses externos prolongou o conflito e complicou imensamente qualquer esforço para alcançar a paz.
Iêmen: Outro exemplo marcante é a guerra no Iêmen, onde uma coalizão liderada pela Arábia Saudita, com apoio dos Estados Unidos, tem combatido os rebeldes houthis, que são apoiados pelo Irã. Este conflito, que já dura anos, tem causado uma das maiores crises humanitárias da atualidade, mas continua sendo uma peça central no jogo de poder entre Arábia Saudita e Irã pelo domínio regional.
Líbia: Após a queda de Muammar Gaddafi em 2011, a Líbia mergulhou em um caos de milícias e governos rivais. Potências estrangeiras como a Turquia, a Rússia, os Emirados Árabes Unidos e o Egito têm apoiado diferentes lados no conflito, transformando a Líbia em mais um tabuleiro de guerra terceirizada.
Mar do Sul da China: Um exemplo interessante e menos evidente de guerra terceirizada envolve a China, que tem utilizado uma combinação de milícias marítimas, embarcações civis e apoio indireto a governos e grupos pró-China para afirmar seu controle sobre o Mar do Sul da China. A estratégia de Pequim envolve a construção de ilhas artificiais e a militarização da região, desafiando as reivindicações territoriais de países como Filipinas, Vietnã e Malásia. Embora não seja uma guerra convencional, essa abordagem se encaixa na lógica da guerra terceirizada, onde a China evita um confronto direto com os Estados Unidos e outros atores globais, mas utiliza intermediários e táticas de intimidação para expandir sua influência e afirmar sua soberania na região.
Grupo Wagner e a Invasão da Ucrânia: A guerra por procuração ganhou uma nova face com a atuação do grupo Wagner, uma organização paramilitar privada que opera como uma extensão informal do poder russo. Na invasão da Ucrânia em 2022, o Wagner foi utilizado para realizar operações em apoio às forças russas, permitindo ao Kremlin negar envolvimento direto em certas atividades e evitar a responsabilidade internacional. Além disso, o grupo Wagner estendeu seus tentáculos pela África, onde atua em países como Líbia, Sudão e República Centro-Africana, protegendo interesses russos e influenciando conflitos regionais. Essa abordagem permite à Rússia expandir sua influência global sem os custos diretos de uma intervenção militar convencional.
Blackwater e o Apoio dos EUA: Não podemos falar de proxy war sem mencionar a Blackwater (atualmente conhecida como Academi), uma empresa militar privada que ganhou notoriedade durante a guerra do Iraque. Contratada pelo governo dos Estados Unidos, a Blackwater foi usada para realizar missões que normalmente seriam atribuídas ao exército, mas com uma camada adicional de separação entre as ações no campo de batalha e a responsabilidade direta do governo. Isso permitiu aos EUA continuar suas operações no Iraque com menos escrutínio público e político. A existência e o uso dessas empresas privadas mostram como as grandes potências utilizam métodos indiretos para perseguir seus objetivos estratégicos, minimizando os riscos políticos e diplomáticos.
OTAN e o Apoio na Ucrânia: Mais recentemente, o apoio da OTAN e dos Estados Unidos à Ucrânia na invasão russa é um exemplo claro de proxy war em pleno desenvolvimento. Desde 2014, com a anexação da Crimeia pela Rússia e o início dos conflitos no leste da Ucrânia, os Estados Unidos e seus aliados na OTAN têm fornecido apoio militar significativo, incluindo armamentos avançados, treinamento e assistência financeira ao governo ucraniano. Com a invasão em grande escala da Ucrânia pela Rússia em 2022, esse apoio se intensificou. Embora as forças ocidentais não estejam diretamente envolvidas no combate, o suporte que oferecem à Ucrânia é crucial para o esforço de guerra contra a Rússia, exemplificando perfeitamente como grandes potências utilizam terceiros para enfrentar seus adversários sem um confronto direto.
Hezbollah e Hamas: O apoio do Irã ao Hezbollah no Líbano e ao Hamas na Palestina é outro exemplo. Essas organizações, que têm como objetivo combater Israel, recebem suporte militar, financeiro e logístico do Irã. O Hezbollah, em particular, tem se tornado uma força poderosa na região, engajando-se em conflitos não só contra Israel, mas também em guerras civis como na Síria, sempre com o apoio iraniano. Da mesma forma, o Hamas, que controla a Faixa de Gaza, recebe suporte contínuo do Irã em sua luta contra Israel, resultando em um ciclo de violência que perpetua o conflito na região.
Por Que as Nações Optam pela Proxy War?
As guerras por procuração são atraentes para as grandes nações por várias razões. Primeiro, ela permite que um país persiga seus interesses estratégicos sem arriscar a vida de suas próprias tropas em grande escala. Além disso, minimiza os custos políticos domésticos, já que a guerra não é “oficialmente” deles. Os líderes podem evitar a resistência pública que muitas vezes acompanha o envolvimento direto em guerras estrangeiras.
Segundo, esse tipo de guerra cria uma camada de distanciamento, permitindo que as potências neguem envolvimento direto e responsabilidade pelos danos causados. É um jogo perigoso, onde as potências podem “lavar as mãos” das atrocidades cometidas por seus aliados ou proxies, alegando que não têm controle direto sobre as ações no terreno.
Finalmente, a guerra terceirizada permite a prolongação do conflito, que, em algumas situações, pode ser do interesse das potências envolvidas. Um conflito prolongado pode enfraquecer um inimigo sem a necessidade de uma vitória direta, ou pode impedir que uma região caia totalmente sob a influência de outra potência.
O Direito Internacional e as Guerras por Procuração: Uma Análise Técnica
Embora essas guerras sejam uma realidade geopolítica desde o período da Guerra Fria, as normas jurídicas que as regem continuam a evoluir à medida que as nações e organizações internacionais buscam mitigar seus efeitos devastadores.
Uma guerra por procuração ocorre quando uma potência utiliza atores terceiros – sejam estados, grupos armados ou organizações não estatais – para promover seus interesses em um conflito armado, sem se envolver diretamente no combate. Esse tipo de guerra permite que as potências evitem a responsabilidade direta e as consequências jurídicas associadas a um conflito armado interestatal.
Princípios do Direito Internacional Aplicáveis às Proxy Wars
O Direito Internacional, particularmente o Direito Internacional Humanitário (DIH) e o Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH), estabelece regras que limitam as ações das partes envolvidas em conflitos armados, sejam eles diretos ou por procuração.
Soberania Nacional e Não Intervenção
O princípio da soberania nacional é um dos pilares do Direito Internacional. A Carta das Nações Unidas, em seu Artigo 2(4), proíbe o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer estado. A participação em uma guerra por procuração, ao apoiar grupos armados contra o governo de um estado soberano, pode ser interpretada como uma violação desse princípio.
A responsabilidade internacional de um Estado pode ser acionada quando este patrocina ou apoia grupos armados em conflitos em outros países. De acordo com o Artigo 8 do Projeto de Artigos sobre a Responsabilidade Internacional dos Estados da Comissão de Direito Internacional (CDI), um Estado é responsável por atos de entidades não estatais que atua sob suas instruções, direção ou controle.
Direito Internacional Humanitário (DIH)
Mesmo em conflitos por procuração, as partes envolvidas devem cumprir com as obrigações do DIH, como estipulado nas Convenções de Genebra de 1949 e seus Protocolos Adicionais. Essas normas exigem que todas as partes em conflito protejam os civis, tratem prisioneiros de guerra humanamente e limitem o uso de armas que causem sofrimento desnecessário.
Crime de Agressão
O Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional (TPI), define o crime de agressão como “o planejamento, a preparação, a iniciação ou a execução, por uma pessoa em posição de efetivo controle ou direção sobre a ação política ou militar de um Estado, de um ato de agressão que, por sua natureza, gravidade e escala, constitua uma violação manifesta da Carta das Nações Unidas.” Apoiar grupos armados em uma guerra por procuração pode, em certas circunstâncias, ser qualificado como uma forma de agressão.
Desafios na Aplicação do Direito Internacional às Proxy Wars
A natureza indireta das guerras por procuração complica a atribuição de responsabilidade. Estados que apoiam grupos armados frequentemente o fazem de maneira a manter uma negação plausível, dificultando a coleta de provas para estabelecer a responsabilidade estatal.
Há debates sobre quando o DIH se aplica em conflitos que envolvem atores não estatais. A classificação de um conflito como internacional ou não internacional é essencial para determinar quais regras do DIH se aplicam, mas as proxy wars frequentemente envolvem uma mistura de ambos os tipos de conflito, complicando ainda mais essa análise.
Embora existam tribunais internacionais, como o TPI, que podem julgar crimes de guerra e crimes de agressão, o cumprimento das decisões desses tribunais depende da cooperação dos Estados. No contexto de guerras por procuração, onde o envolvimento de potências globais é comum, essa cooperação pode ser limitada.
As guerras por procuração apresentam desafios significativos para o Direito Internacional, tanto na sua aplicação quanto na sua efetividade. No entanto, os princípios fundamentais, como a soberania estatal, a responsabilidade estatal e o cumprimento das normas do Direito Internacional Humanitário, continuam sendo essenciais para mitigar os impactos desses conflitos.