CONSENSO DE WASHINGTON

Como China e Coreia do Sul Desafiaram o Consenso de Washington

O Consenso de Washington, termo cunhado em 1989 pelo economista John Williamson, refere-se a um conjunto de dez recomendações econômicas promovidas por instituições sediadas em Washington, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e o Departamento do Tesouro dos EUA. Essas políticas denominadas de neoliberais, voltadas para países em desenvolvimento, buscavam promover crescimento econômico e estabilização macroeconômica por meio de disciplina fiscal, privatização, liberalização comercial e redução do papel do Estado. Contudo, os resultados foram controversos, frequentemente ampliando desigualdades e falhando em entregar crescimento sustentado. Enquanto países da América Latina, como o Brasil, adotaram parcialmente essas reformas, a China e, em menor grau, a Coreia do Sul rejeitaram aspectos centrais do Consenso, optando por modelos de desenvolvimento centrados no Estado. Essa recusa, especialmente no contexto geopolítico, desafia a narrativa de universalidade do neoliberalismo e reflete estratégias distintas frente à competição global.

O Consenso de Washington: Promessas e Limitações

As dez recomendações do Consenso de Washington incluíam:

  1. Disciplina fiscal: Redução de déficits públicos e controle da dívida.
  2. Reforma tributária: Simplificação e redução de impostos para empresas.
  3. Privatização: Transferência de estatais para a iniciativa privada.
  4. Liberalização comercial: Redução de barreiras tarifárias e incentivo ao livre comércio.
  5. Desregulamentação: Menos intervenção estatal na economia.
  6. Proteção à propriedade privada: Fortalecimento dos direitos de propriedade.
  7. Abertura a investimentos estrangeiros: Facilitação do capital externo.
  8. Taxas de juros positivas: Para conter a inflação.
  9. Câmbio competitivo: Ajuste das moedas para estimular exportações.
  10. Redirecionamento de gastos públicos: Priorização de saúde, educação e infraestrutura.

Na América Latina, a adoção dessas medidas, como no Brasil com o Plano Real e as privatizações da década de 1990, trouxe estabilidade monetária em alguns casos, mas também aprofundou desigualdades sociais. O Brasil privatizou 119 empresas estatais, gerando mais de 70 bilhões de dólares, mas ainda mantém 135 estatais federais, segundo a Fundação Getúlio Vargas. A “Década Perdida” da América Latina, marcada por crises de dívida e estagnação, evidenciou as limitações dessas políticas, que frequentemente beneficiaram elites econômicas e investidores estrangeiros em detrimento das populações locais.

A Negação da China: Um Modelo Estatal Pragmático

A China rejeitou explicitamente o Consenso de Washington, desenvolvendo o chamado “Consenso de Pequim”, um modelo que combina planejamento estatal com abertura seletiva ao mercado. Em vez de adotar a liberalização total, a China implementou políticas que priorizaram o controle estatal e a estabilidade econômica:

  • Controle estatal sobre setores estratégicos: Empresas estatais, como a PetroChina e a State Grid, continuam a dominar setores como energia, telecomunicações e transporte. Em 2020, 96 das 500 maiores empresas globais da Fortune eram chinesas, muitas estatais.
  • Investimentos massivos em infraestrutura: A China construiu 45 mil quilômetros de trens de alta velocidade em 20 anos, um feito impossível sob as restrições fiscais do Consenso de Washington.
  • Política industrial ativa: O governo chinês apoiou setores como tecnologia (Huawei, Tencent) e energias renováveis, oferecendo subsídios e proteção contra concorrência externa.
  • Controle de câmbio e capital: A China mantém um controle rígido sobre o yuan e fluxos de capital, evitando a volatilidade associada à liberalização financeira.
  • Foco em inovação: Investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) atingiram 2,4% do PIB em 2020, comparável a nações desenvolvidas, com avanços em inteligência artificial e 5G.

Essa abordagem permitiu à China alcançar um crescimento médio de 10,5% ao ano na primeira década do século XXI, enquanto países como os EUA e a Alemanha cresceram a 1,7% e 0,9%, respectivamente. A participação da China no comércio mundial subiu de 1% nos anos 1980 para 10,4% em 2010, consolidando sua posição como potência econômica.

A Coreia do Sul: Uma Abordagem Híbrida

A Coreia do Sul, ao contrário da China, não rejeitou o Consenso de Washington de forma tão enfática, mas adaptou suas recomendações ao seu contexto, mantendo um papel significativo do Estado na economia. Durante as décadas de 1960 e 1970, sob Park Chung-hee, a Coreia do Sul implementou um modelo de desenvolvimento orientado por exportações, com forte intervenção estatal. Após a crise financeira asiática de 1997, pressionada pelo FMI, a Coreia do Sul adotou algumas reformas neoliberais, como desregulamentação financeira e privatizações parciais (ex.: Korea Telecom). No entanto, o país resistiu à liberalização total:

  • Manutenção de conglomerados estatais e privados: Os chaebols (como Samsung, Hyundai e LG) receberam apoio estatal contínuo, com políticas industriais que incentivaram inovação e exportações.
  • Controle seletivo de capital: Embora tenha liberalizado parcialmente o mercado financeiro, a Coreia do Sul manteve restrições para proteger sua economia de choques externos.
  • Investimentos em tecnologia e educação: O governo priorizou P&D, com gastos de 4,8% do PIB em 2020, um dos maiores do mundo, e promoveu a formação de uma força de trabalho altamente qualificada.
  • Política comercial estratégica: A Coreia do Sul negociou acordos de livre-comércio (ex.: com os EUA e a UE), mas protegeu setores-chave, como agricultura e manufatura.

A Coreia do Sul, portanto, combinou elementos do Consenso de Washington com um modelo de desenvolvimento liderado pelo Estado, semelhante ao da China, mas com maior abertura ao mercado. Esse modelo híbrido permitiu que o país se tornasse a 10ª maior economia global, com exportações de US$ 680 bilhões em 2022, lideradas por semicondutores e automóveis (já falamos sobre isso aqui).

Contexto Geopolítico: Competição e Estratégias Regionais

A rejeição do Consenso de Washington por China e Coreia do Sul também reflete considerações geopolíticas. A China, ao adotar o Consenso de Pequim, buscou afirmar sua soberania econômica e geopolítica, desafiando a hegemonia dos EUA. O país utiliza sua influência econômica, como a Iniciativa Cinturão e Rota, para expandir sua presença global sem se subordinar às instituições ocidentais. No contexto da rivalidade sino-americana, a China evita a dependência de políticas ocidentais, como as do Consenso de Washington, para manter autonomia estratégica. Por exemplo, Beijing resiste a pressões dos EUA para liberalizar totalmente seu mercado financeiro, temendo perda de controle sobre sua economia.

A Coreia do Sul, por sua vez, enfrenta um dilema geopolítico devido à sua aliança com os EUA e sua proximidade econômica com a China. Como aliado dos EUA, Seul fortalece laços trilaterais com Washington e Tóquio para conter a Coreia do Norte, mas também busca evitar retaliações econômicas da China, seu maior parceiro comercial (25% das exportações sul-coreanas em 2019). A Coreia do Sul adota uma estratégia de “hedging”, equilibrando-se entre as duas potências. Durante o governo Moon Jae-in (2017-2022), houve maior aproximação com a China, enquanto o governo Yoon Suk-yeol (2022-presente) reforçou a aliança com os EUA, mas sem romper laços econômicos com Beijing. Essa abordagem reflete uma rejeição parcial do Consenso de Washington, pois a Coreia do Sul mantém políticas estatais para proteger interesses nacionais em um contexto de competição sino-americana.

Geopoliticamente, a China usa sua relação com a Coreia do Sul para enfraquecer a influência dos EUA na Ásia. Beijing busca manter a estabilidade na Península Coreana, especialmente para evitar o colapso do regime norte-coreano, que poderia fortalecer a presença militar dos EUA na região. A Coreia do Sul, por sua vez, depende da China para pressionar a Coreia do Norte pela desnuclearização, mas enfrenta tensões devido a questões como o sistema de defesa antimísseis THAAD, que gerou retaliações econômicas chinesas em 2017.

Lições e Contrastes

A China e a Coreia do Sul desafiam a narrativa do Consenso de Washington, mostrando que o desenvolvimento econômico pode ser alcançado com forte intervenção estatal. A China rejeitou completamente o modelo neoliberal, enquanto a Coreia do Sul adotou uma abordagem híbrida, adaptando reformas liberais sem abandonar o planejamento estatal. No contexto geopolítico, ambos os países navegam a rivalidade sino-americana com estratégias distintas: a China busca autonomia e liderança regional, enquanto a Coreia do Sul equilibra alianças e interesses econômicos.

Para o Brasil, que ainda lida com as consequências das reformas neoliberais, as experiências de China e Coreia do Sul sugerem a importância de políticas adaptadas ao contexto local. Como destacou Aloizio Mercadante em 2025, “o Consenso de Washington não é consenso nem em Washington”. A lição é clara: o sucesso econômico e geopolítico exige um Estado ativo, capaz de coordenar investimentos e proteger interesses nacionais em um mundo de crescentes tensões.

Mais detalhes: Consenso de Washington – Wikipédia / China’s Economic Rise: History, Trends, Challenges, and Implications for the United States – EveryCRSReport.com / A Quick Guide to Beijing Consensus in Economy / A ‘China Model?’ Beijing’s Promotion of Alternative Global Norms and Standards / China Overview: Development news, research, data | World Bank / Beijing Consensus – Wikipedia / Building a New U.S.-Korea Technology Alliance: Strategies and Policies in an Entangled World | Carnegie Endowment for International Peace / Excerpt: The US–South Korea Alliance | Council on Foreign Relations / South Korea: Background and U.S. Relations | Congress.gov | Library of Congress / Questioning the presumption of a US “consensus” on China policy | Brookings / The Geopolitics of South Korea–China Relations: Implications for U.S. Policy in the Indo-Pacific | RAND

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