Olhando para o mapa, o Estreito de Bering parece uma fenda estreita entre o leste da Rússia e o Alasca, nos Estados Unidos. Mas essa faixa de água fria e aparentemente inóspita tem uma importância estratégica e histórica enorme. Quem poderia imaginar que apenas 85 quilômetros de mar separariam as duas maiores potências do mundo? Esse é o Estreito de Bering: uma linha que separa não apenas territórios, mas influências políticas e ambições geopolíticas, uma espécie de fronteira líquida entre Oriente e Ocidente. Mas será que essa divisão é tão simples assim?
A Divisão EUA-Rússia
A partir de uma perspectiva geopolítica, o Estreito de Bering é uma área de grande relevância. No meio do século XIX, os Estados Unidos compraram o Alasca da Rússia por um valor simbólico (os famosos 7,2 milhões de dólares) naquilo que ficou conhecido como a “Compra do Alasca” (ja escrevemos sobre isso aqui). Muita gente, na época, criticou o negócio, chamando-o de “a loucura de Seward” (William H. Seward era o Secretário de Estado dos EUA responsável pelo acordo). Mas será que era loucura mesmo? Hoje, sabemos que a região do Alasca é riquíssima em recursos naturais, e a posição estratégica dos EUA ao lado da Rússia se tornaria, eventualmente, um ponto de vantagem na Guerra Fria.
Mas o Estreito de Bering é mais do que uma linha de fronteira; é também um espaço onde a proximidade e a tensão se encontram. As ilhas Diómedes, que ficam entre a Rússia e os EUA, estão separadas por apenas quatro quilômetros. A Diómedes Menor pertence aos Estados Unidos, enquanto a Diómedes Maior é da Rússia. Essas ilhas estão tão próximas que, em um dia claro, você consegue ver de um lado para o outro. E a diferença de fuso horário entre elas? Quase um dia inteiro! Uma ironia perfeita, não acha? Olhar para a Rússia do futuro, mas ficar do lado americano do passado. E pensar que, no auge da Guerra Fria, essas duas ilhas representavam uma das fronteiras mais fortificadas do mundo.
Geopolítica e Tensão no Extremo Norte
Durante a Guerra Fria, o Estreito de Bering foi palco de tensões entre os Estados Unidos e a União Soviética. Ambos os lados sabiam da importância estratégica do local, e as forças armadas de ambos os países estavam em alerta constante. As patrulhas americanas no Alasca mantinham um olho atento nos movimentos soviéticos, e a União Soviética, por sua vez, monitorava de perto qualquer atividade suspeita vinda do lado americano. Mesmo sem batalhas diretas, essa vigilância constante tornou o estreito um símbolo da guerra silenciosa e do controle de território.
Mas e hoje? A importância do Estreito de Bering permanece, especialmente à medida que as mudanças climáticas alteram a paisagem ártica. Com o derretimento do gelo, novas rotas de navegação se abrem e, claro, ambos os lados estão atentos ao acesso a recursos minerais, petróleo e gás na região. A Rússia, com suas grandes ambições árticas, está investindo em infraestrutura militar e instalações no Ártico, o que acende um sinal de alerta para os EUA. As águas frias do Estreito de Bering aquecem novamente as tensões entre esses dois gigantes.
Curiosidades do Estreito de Bering
Agora, vamos dar uma pausa na geopolítica e explorar algumas curiosidades. O Estreito de Bering é, de certa forma, uma prova curiosa de que a Terra é redonda. Sim, isso mesmo. No ponto em que Rússia e Estados Unidos quase se encontram, você poderia caminhar sobre o gelo de um lado para o outro durante o inverno, embora essa travessia seja perigosa e tecnicamente ilegal. E é irônico pensar que, se pudesse andar de uma ilha Diómedes para a outra, você “viajaria no tempo” devido à Linha Internacional de Data, que passa exatamente entre elas.
E mais: existe uma teoria, ainda debatida entre arqueólogos, de que o Estreito de Bering foi o ponto de passagem de antigos povos asiáticos para o continente americano, o que significa que esse estreito pode ter sido o caminho que trouxe os primeiros humanos ao Novo Mundo, há mais de 20 mil anos. (link para o estudo ao fim do texto)
Direito Internacional e Conflitos na Região
No campo do direito internacional, o Estreito de Bering levanta algumas questões interessantes. Pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, as águas do estreito são consideradas internacionais, o que garante liberdade de navegação. Contudo, tanto os Estados Unidos quanto a Rússia monitoram essa região de perto, e qualquer tentativa de explorar recursos naturais na área tende a ser minuciosamente observada.
Além disso, a região também está sujeita a disputas relacionadas aos direitos de pesca e à exploração de recursos marítimos. Embora não haja batalhas armadas por ali, há uma verdadeira “guerra fria” pela influência econômica e militar sobre essas águas. Afinal, quem possui os direitos sobre os recursos no Ártico? Como as fronteiras marítimas serão definidas em uma área onde as condições geográficas estão mudando a cada ano devido ao aquecimento global?
O Estreito de Bering é um lembrete de que as fronteiras, mesmo as naturais, carregam consigo uma carga histórica e geopolítica imensa. É uma linha tênue entre dois mundos, um espaço onde o passado e o presente se encontram. Podemos pensar no Estreito de Bering como um lugar onde a geografia e a política se misturam, onde os recursos naturais despertam o interesse e a ganância de potências globais. Mas, ao mesmo tempo, é um lugar que nos convida a refletir sobre a fragilidade de nossas divisões e as ironias do nosso tempo. No final das contas, talvez o Estreito de Bering nos lembre que, por mais que tentemos marcar territórios e traçar fronteiras, a Terra continua a girar, ignorando completamente nossas linhas imaginárias.
Leituras complementares:
Estreito de Bering: análises a partir da geopolítica. Cadernos do Leste. 20, 20 (jun. 2021)
Interações entre Humanos Pré-Históricos e a Megafauna Quaternária na América do Sul