Se você acompanha debates sobre economia, já deve ter esbarrado naquela eterna briga entre quem defende o livre mercado e quem enxerga o Estado como o grande motor do desenvolvimento. De um lado, os defensores do laissez-faire, como Adam Smith e Milton Friedman, argumentam que o mercado, quando deixado livre, encontra sozinho os melhores caminhos para a inovação e o crescimento. Do outro, pensadores como John Maynard Keynes e Mariana Mazzucato mostram como o Estado tem um papel essencial na construção das bases para que o próprio mercado prospere. Ao fim do texto farei as minhas recomendações de leituras sobre o tema.
Mas será que essa disputa faz sentido? Será que mercado e Estado são realmente forças opostas ou, no fundo, se complementam? Afinal, há mercado sem Estado? É sobre isso que vamos falar.
O Estado Como Alicerce do Mercado
Imagine um prédio imenso e brilhante, cheio de escritórios de startups, bancos, fábricas, empresas de tecnologia. Esse prédio simboliza o mercado. Mas qual é a fundação desse edifício? São as instituições criadas pelo Estado.
O livre mercado só funciona porque há um conjunto de regras que garantem contratos, direitos de propriedade e um ambiente minimamente previsível. Foi assim desde os primórdios do capitalismo. O próprio Adam Smith, frequentemente citado como defensor do mercado livre, reconhecia a necessidade do Estado para garantir segurança, justiça e infraestrutura.
Sem Estado, não haveria moeda confiável, tribunais para resolver disputas comerciais ou até mesmo estradas e portos para o comércio fluir. E quando olhamos para os grandes momentos de avanço econômico, percebemos que o Estado estava lá, criando condições para que a inovação acontecesse.
História: O Estado como Ponto de Partida
Se voltarmos no tempo, veremos que os maiores saltos tecnológicos e econômicos foram impulsionados por investimentos estatais.
- Século XIX – Revolução Industrial: O crescimento das indústrias na Inglaterra e nos EUA não foi só resultado de empreendedores visionários, mas também de infraestrutura pública como ferrovias, financiadas e incentivadas pelos governos.
- Meados do Século XX – O Estado de Bem-Estar e a Reconstrução Pós-Guerra: Com a ascensão do pensamento keynesiano, os governos passaram a investir fortemente em infraestrutura, saúde e educação. Os EUA criaram programas como a Interstate Highway System, que impulsionou a logística e o comércio interno. A Europa, com o Plano Marshall, recebeu dinheiro do governo americano para se reerguer.
- Corrida Espacial – O Berço da Tecnologia Moderna: Você sabia que boa parte da tecnologia que usamos hoje vem de pesquisas financiadas pelo governo? O GPS, a internet e até mesmo a tela sensível ao toque do seu celular têm raízes em investimentos estatais. A NASA, por exemplo, despejou bilhões de dólares na busca pela exploração espacial, criando uma onda de inovações que depois foram aproveitadas pelo setor privado.
- Medicina e Ciência – O Estado Como Motor da Inovação: Vacinas, tratamentos contra o câncer, antibióticos… Todos esses avanços só foram possíveis porque governos investiram pesado em pesquisa científica. Empresas privadas pegam essa base e desenvolvem produtos, mas sem o impulso inicial do Estado, muitos desses avanços não existiriam.
A Internet: Do Investimento Estatal à Revolução do Mercado
Se tem um exemplo claro de como o Estado pode plantar a semente e o mercado pode transformá-la em uma floresta, é a internet. Hoje, não conseguimos imaginar o mundo sem ela, mas o que pouca gente sabe é que sua origem não está em uma garagem do Vale do Silício, e sim dentro do governo dos Estados Unidos, mais especificamente no Departamento de Defesa.
A Semente: ARPANET e o Papel do Governo
A história da internet começa nos anos 1960, em plena Guerra Fria. O medo de um ataque soviético fazia os EUA buscarem formas de manter sua comunicação segura e descentralizada. Foi nesse contexto que a ARPA (Advanced Research Projects Agency, depois renomeada para DARPA – Defense Advanced Research Projects Agency) recebeu a missão de criar uma rede de computadores que pudesse continuar funcionando mesmo se parte dela fosse destruída.
Em 1969, sob a presidência de Richard Nixon, o projeto se concretizou com a criação da ARPANET, a primeira rede de computadores interligados. As primeiras quatro instituições conectadas foram:
- UCLA (Universidade da Califórnia, Los Angeles)
- Stanford Research Institute (SRI), na Califórnia
- Universidade da Califórnia, Santa Barbara (UCSB)
- Universidade de Utah
A rede era rudimentar, baseada em troca de pacotes de dados, mas o conceito revolucionário estava ali: computadores separados fisicamente podiam se comunicar por meio de uma rede distribuída.
Da Pesquisa ao Uso Comercial
Nos anos 1970 e 1980, a ARPANET se expandiu para outras universidades e institutos de pesquisa, sendo utilizada principalmente para comunicação acadêmica e militar. A grande virada veio nos anos 1990, quando o governo dos EUA decidiu abrir a tecnologia para o uso comercial.
Foi nesse período que surgiram as primeiras empresas focadas em serviços de internet, como a CompuServe, Prodigy e America Online (AOL). Essas empresas foram as responsáveis por levar a internet para dentro das casas das pessoas, ainda de forma bem limitada, com conexões discadas e velocidades muito baixas.
As primeiras cidades a serem interligadas comercialmente nos EUA foram grandes centros urbanos como San Francisco, Nova York e Washington D.C., onde havia uma alta concentração de empresas e universidades.
O Estopim da Era Digital
O próximo grande salto veio com a criação da World Wide Web (WWW) por Tim Berners-Lee, em 1991, e o desenvolvimento de navegadores amigáveis, como o Mosaic e o Netscape Navigator. Isso permitiu que a internet deixasse de ser um espaço restrito para acadêmicos e militares e se tornasse uma plataforma acessível para qualquer pessoa.
A partir daí, o mercado assumiu a dianteira. Empresas como Microsoft e Yahoo! começaram a explorar o potencial da rede, enquanto gigantes como Amazon e Google surgiram nos anos seguintes, moldando a internet como conhecemos hoje.
A internet, que começou como um experimento militar financiado pelo Estado, se transformou no maior motor de inovação da era moderna. Um exemplo perfeito de como o investimento público pode pavimentar o caminho para que o mercado floresça e crie revoluções que mudam completamente a sociedade.
O Livre Mercado Como Motor da Eficiência
Mas então o Estado é a peça-chave e o mercado apenas colhe os frutos? Não exatamente. O mercado tem uma habilidade única: transformar ideias em produtos e serviços de forma eficiente e competitiva.
Se o Estado investe em pesquisas e infraestrutura, é o mercado que encontra as melhores formas de aplicá-las no dia a dia. Pense na indústria da tecnologia. O Vale do Silício, que começou com projetos financiados pelo governo dos EUA, se tornou um epicentro da inovação porque empresas privadas souberam transformar conhecimento científico em produtos desejados pelo consumidor.
E tem mais: a concorrência força empresas a melhorarem constantemente seus produtos. O governo pode despejar dinheiro em pesquisa, mas são empresas competindo entre si que tornam um celular cada vez mais rápido, um carro elétrico mais acessível ou uma inteligência artificial mais útil.
O Papel do Estado na Concorrência: O Equilíbrio Ideal
Aqui chegamos em um ponto crucial: o Estado não precisa ser um competidor do mercado, mas sim um facilitador da inovação. Como?
Uma estratégia inteligente usada por governos ao longo da história é financiar vários players ao mesmo tempo. Em vez de escolher uma única empresa para desenvolver uma tecnologia, o Estado pode lançar um desafio e oferecer financiamento para diversas empresas e instituições tentarem encontrar a melhor solução.
Foi assim com a corrida espacial nos anos 60 e está sendo assim agora com a busca por vacinas, energias limpas e inteligência artificial. Isso cria um ambiente onde empresas privadas competem para oferecer as melhores soluções, enquanto o Estado garante que há um direcionamento estratégico.
Ou seja, o Estado joga gasolina na fogueira da inovação e deixa o mercado fazer seu trabalho de selecionar as melhores ideias.
No final das contas, mercado e Estado não são inimigos, mas sim parceiros em um grande jogo econômico. O Estado estabelece as regras, investe na base científica e garante infraestrutura. O mercado transforma isso em eficiência, inovação e competitividade.
A pergunta que devemos fazer não é “quem é mais importante?”, mas sim “como equilibramos essa relação para o benefício de todos?”. Se olharmos para a história, veremos que os momentos de maior prosperidade aconteceram quando essa parceria funcionou bem.
O que nos resta agora é pensar: qual será o próximo grande salto? Como mercado e Estado podem, juntos, moldar o futuro? Isso, meu amigo, ainda está sendo escrito.
Livros
O Estado Empreendedor – Mariana Mazzucato
- Esse livro é fundamental para entender como o Estado tem um papel ativo no desenvolvimento econômico e na inovação. Mazzucato mostra como governos foram essenciais no financiamento de tecnologias que hoje são usadas por gigantes do setor privado.
Capitalismo e Liberdade – Milton Friedman
- Apesar de ser um dos maiores defensores do livre mercado, Friedman reconhece que o Estado tem um papel essencial, desde que seja limitado a garantir estabilidade monetária, contratos e concorrência justa.
A Grande Transformação – Karl Polanyi
- Um clássico que mostra como o mercado, quando deixado totalmente livre, pode destruir sociedades se não houver regulações e proteções estatais. Ele argumenta que o Estado e o mercado precisam caminhar juntos para evitar crises sociais.
Keynes x Hayek: O embate que definiu a economia moderna – Nicholas Wapshott
- Esse livro é uma verdadeira batalha de ideias entre John Maynard Keynes (pró-intervenção estatal) e Friedrich Hayek (pró-livre mercado). O interessante é que ambos reconhecem que o outro lado tem pontos válidos.
Daron Acemoglu & James Robinson – Por que as Nações Fracassam (ja escrevemos sobre o livro aqui)
- Uma análise sobre como o equilíbrio entre mercado e Estado pode determinar o sucesso ou fracasso de uma nação. Sociedades que encontram um meio-termo entre regulação e liberdade econômica prosperam.