Vamos falar de lawfare, essa palavra que mistura “lei” e “guerra” e que anda na boca de muita gente, mas nem sempre com clareza. É um termo que carrega peso, polêmica e uma boa dose de confusão. Ele pode ser uma ferramenta de justiça ou uma arma para acertar contas políticas. Vamos destrinchar sua origem, os momentos mais quentes em que ele apareceu no mundo, o que está rolando hoje sobre o tema e, principalmente, como ele se manifesta no Brasil, com um olhar mais profundo e exemplos que mostram o quanto isso mexe com nossa política, incluindo as condenações do 8 de janeiro, as acusações de “caça às bruxas” levantadas por Trump e as narrativas de perseguição política no espectro da direita.
A história do lawfare começa com um pé na academia e outro no campo de batalha. Em 1957, um artigo sobre divórcios já usava o termo, mas ele só ganhou vida mesmo em 2001. Foi quando o antropólogo John Comaroff o descreveu como o uso de leis para controlar povos indígenas, uma forma de dominação disfarçada de legalidade. No mesmo ano, o Major General da Força Aérea americana Charles J. Dunlap Jr. jogou a palavra no radar global, definindo lawfare como “o uso da lei como arma de guerra”. Ele via isso como uma estratégia para alcançar objetivos militares ou políticos sem disparar um tiro. Mais tarde, Dunlap ajustou o conceito, dizendo que o lawfare não é bom nem mau por natureza — tudo depende de quem usa e como. É como uma faca: pode cortar pão ou virar arma.
Casos que Fizeram Barulho no Mundo
O lawfare já deu as caras em vários cantos do planeta, quase sempre com acusações voando de todos os lados. Aqui vão alguns exemplos que marcaram época:
- China e o Mar do Sul: Desde 2003, a China incluiu o lawfare na sua estratégia de “três guerras” (psicológica, midiática e legal). No Mar do Sul da China, o país usa leis domésticas e tratados internacionais para justificar a construção de ilhas artificiais e reivindicar territórios. Vizinhos como Vietnã e Filipinas protestam, mas a China joga o jogo da lei com precisão, evitando conflitos armados enquanto avança suas peças no tabuleiro geopolítico (já falamos sobre isso aqui).
- Israel e Palestina: Esse é um terreno minado. Grupos pró-Palestina usam organismos como a ONU e a Corte Penal Internacional para questionar políticas israelenses, como a ocupação de territórios. Já grupos pró-Israel, como a NGO Monitor, chamam isso de lawfare para deslegitimar o Estado judeu. Do outro lado, ações legais contra ONGs palestinas, acusadas de ligações com terrorismo, também são apontadas como lawfare. É um cabo de guerra jurídico onde cada lado acusa o outro de usar a lei como arma (já falamos sobre uma parte do tema aqui).
- EUA e a Jurisdição Universal: Nos Estados Unidos, a ideia de jurisdição universal — que permite julgar crimes graves em qualquer lugar — já foi chamada de lawfare por figuras como Donald Rumsfeld. Ele via isso como uma tentativa de amarrar as mãos do exército americano com processos por decisões em guerras. É o clássico choque entre buscar justiça e proteger interesses nacionais.
- Belarus e o Jornalista no Avião: Em 2021, Belarus chocou o mundo ao forçar o pouso de um voo comercial para prender o jornalista Raman Pratasevich. Foi um caso escancarado de lawfare: usar a lei (ou a fachada dela) para calar vozes dissidentes, mesmo fora do país. A comunidade internacional condenou, mas o estrago estava feito.
Esses casos mostram que o lawfare pode ser um instrumento de poder, seja para avançar agendas globais, seja para silenciar opositores. É uma linha tênue entre justiça e manipulação.
Hoje, o lawfare é um tema quente porque mexe com a alma da democracia. Quando a lei vira arma, o risco é transformar tribunais em arenas políticas, onde o debate público perde espaço para processos judiciais. Isso é chamado de “judicialização da política”, e muita gente teme que erode a confiança nas instituições. Imagine: se todo mundo acha que o juiz está puxando para um lado, como confiar na Justiça?
Por outro lado, há quem defenda o lawfare como um jeito de os mais fracos enfrentarem os poderosos. Em fóruns internacionais, por exemplo, países ou grupos menores usam a lei para desafiar gigantes. Mas como separar o que é justiça do que é abuso? Não há uma definição clara, e isso alimenta a confusão. Some a isso o papel da mídia, que muitas vezes transforma processos em espetáculos, amplificando a polarização. É o que chamam de “guerra midiática”, uma aliada poderosa do lawfare.
O Lawfare no Brasil: Onde a Coisa Esquenta
No Brasil, o lawfare virou quase um personagem de novela, especialmente depois da Operação Lava Jato, que começou em 2014 e sacudiu o país. A investigação desmontou esquemas bilionários de corrupção – comprovados e devolvidos -, mas também abriu espaço para acusações de lawfare por parte da esquerda brasileira. Vamos olhar mais de perto, com exemplos concretos, incluindo as condenações do 8 de janeiro, as declarações de Trump sobre “caça às bruxas” e as narrativas de perseguição política no espectro da direita.
- Lava Jato e os Processos Polêmicos: A Lava Jato colocou políticos e empresários na mira, mas alguns casos levantaram sobrancelhas. Críticos apontam que certas condenações basearam-se em provas frágeis, como delações premiadas sem corroboração sólida, ou que o timing dos processos parecia alinhado com períodos eleitorais. Por exemplo, prisões e denúncias que coincidiam com campanhas políticas foram vistas por alguns como tentativas de influenciar o jogo eleitoral, tirando figuras-chave do tabuleiro. Por outro lado, defensores da operação dizem que ela foi um marco contra a impunidade, expondo uma corrupção enraizada e comprovada. O problema é que, em alguns casos, decisões foram revistas por irregularidades, como a falta de imparcialidade de juízes ou vazamentos seletivos de informações – apesar de terem sido revisadas pelo TRF4, STJ e o proprio STF.
- O Papel da Mídia: Aqui, o lawfare ganha um tempero brasileiro. A mídia teve um papel enorme na Lava Jato, transformando delações e audiências em manchetes diárias. Isso moldava a opinião pública antes mesmo de sentenças serem dadas. Esse jogo entre tribunais e manchetes é um terreno fértil para acusações de lawfare, onde a lei e a narrativa pública andam de mãos dadas.
- Eleições e o Judiciário: As eleições de 2018 e 2022 trouxeram o lawfare à tona de novo. Decisões judiciais, como a inelegibilidade de candidatos ou ações contra desinformação, foram celebradas por alguns como proteção à democracia e criticadas por outros como interferência indevida. Um caso marcante foi o papel do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2022, que agiu contra as famosas fake news de ambos os espectros políticos e ataques ao sistema eleitoral. Para alguns, isso foi um uso legítimo da lei; para outros, uma forma de lawfare que favoreceu certos lados. Outro exemplo é a prisão de figuras políticas por supostas ameaças à democracia, que geraram debates acalorados sobre os limites do Judiciário.
- Casos Além da Política: Fora da esfera política, o lawfare também aparece em disputas comerciais ou sociais. Empresas já foram acusadas de usar ações judiciais para intimidar concorrentes ou ativistas. Um exemplo hipotético: uma grande corporação processando um pequeno agricultor por questões de terra, usando o peso do sistema legal para pressioná-lo a desistir. Esse tipo de tática, embora menos visível, também é discutido como lawfare.
- Condenações do 8 de Janeiro: Os atos de 8 de janeiro de 2023, quando apoiadores de Jair Bolsonaro invadiram as sedes dos Três Poderes em Brasília, geraram uma onda de prisões e condenações que muitos associam ao lawfare. Segundo o Supremo Tribunal Federal (STF), 2.151 pessoas foram presas em flagrante, com 251 permanecendo em prisão preventiva, acusadas de crimes como tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e danos ao patrimônio público. Críticos, incluindo familiares e defensores dos réus, alegam violações de direitos, como prisões preventivas prolongadas e denúncias genéricas, sem individualização clara das condutas. A Associação de Familiares e Vítimas do 8 de Janeiro (Asfav) argumenta que muitos foram presos sem julgamento justo, apontando o inquérito 4879/2021 como base ampla demais para as acusações. Por outro lado, o STF, a Procuradoria-Geral da República (PGR) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) defendem que o devido processo legal foi respeitado, com prisões justificadas pela gravidade dos atos e pelo risco à ordem pública.
- A “Caça às Bruxas” de Trump: Recentemente, o presidente dos EUA, Donald Trump, defendeu Bolsonaro publicamente, chamando as ações judiciais contra ele de “caça às bruxas”. Em postagens na rede Truth Social, Trump afirmou que Bolsonaro, sua família e milhares de apoiadores são alvos de perseguição política, sem culpa além de “lutar pelo povo”. Ele criticou o Judiciário brasileiro, especialmente o ministro Alexandre de Moraes, e chegou a impor tarifas de 50% sobre produtos brasileiros e sanções contra Moraes via Lei Magnitsky (falamos sobre isso antes da sanção ser declarada), alegando violações de direitos humanos. Essas declarações geraram reações polarizadas: aliados de Bolsonaro, como deputados do PL e o governador Romeu Zema, celebraram o apoio internacional, enquanto o governo Lula rebateu, afirmando que o Brasil não aceita interferências externas. A narrativa de “caça às bruxas” reforça a ideia de lawfare entre bolsonaristas, que veem as ações do STF como tentativas de silenciar a oposição.
- Perseguições Política: Parlamentares e apoiadores da direita, como Eduardo Bolsonaro, Nikolas Ferreira e Sóstenes Cavalcante, têm denunciado o que chamam de perseguição política sistemática. Eles apontam medidas como a prisão domiciliar de Bolsonaro, o uso de tornozeleira eletrônica e a proibição de contato com certas autoridades como exemplos de lawfare. Eduardo Bolsonaro, por exemplo, foi acusado por Moraes de descumprir medidas cautelares ao usar redes sociais para promover narrativas contra o STF, incluindo articulações nos EUA para buscar sanções contra Moraes. A população alinhada à direita, especialmente em atos na Avenida Paulista em 2025, ecoa essas críticas, pedindo anistia para Bolsonaro e os réus do 8 de janeiro. Eles alegam que o STF, liderado por Moraes, visa calar vozes conservadoras, citando casos como a suspensão de contas de influenciadores de direita e jornalistas. No entanto, membros do governo Lula, como Lindbergh Farias e Marcelo Freixo, defendem que as medidas são proporcionais, citando violações deliberadas de ordens judiciais e ameaças à democracia.
No Brasil, o lawfare é um espelho da nossa polarização. A esquerda grita que é uma ferramenta para persegui-la, apontando casos da Lava Jato como ataques a políticas progressistas. A direita rebate, dizendo que as acusações de lawfare são uma cortina de fumaça para proteger corruptos, com o 8 de janeiro e as sanções de Trump como prova de perseguição de fato. A verdade? Está no meio do tiroteio. Há evidências de abusos judiciais em alguns casos, mas também de crimes reais em outros.
Um Olhar Mais Analítico
O lawfare não é só uma palavra da moda; é um fenômeno que desafia a espinha dorsal das democracias. Ele expõe a fragilidade dos sistemas legais quando usados como armas, mas também mostra sua força como escudo contra abusos de poder. No Brasil, o lawfare reflete um problema maior: a dificuldade de manter instituições imparciais em um país onde a política é um campo de batalha. A judicialização da política, alimentada por um Judiciário ativo, uma mídia voraz e, agora, pressões internacionais como as de Trump, cria um ciclo onde a lei vira tanto solução quanto problema.
Globalmente, o lawfare levanta uma questão incômoda: até que ponto a lei pode ser usada para fins políticos sem corroer a confiança pública? Quando tribunais se tornam arenas de luta, o risco é que a justiça vire um troféu para quem tem mais poder, dinheiro ou influência — seja no Brasil, com as condenações do 8 de janeiro, seja nos EUA, com a narrativa de “caça às bruxas”. No Brasil, esse risco é ainda mais palpável, dado nosso histórico de desigualdades, polarização e interferências externas. Mas há uma luz no fim do túnel: reconhecer o lawfare como um fenômeno real, sem demonizá-lo ou santificá-lo, é o primeiro passo para fortalecer o estado de direito. Isso exige juízes imparciais, mídia responsável e um debate público que resista à tentação de transformar a lei em arma. Porque, no fim das contas, a lei deveria servir para unir, não para dividir — e isso vale tanto para os brasileiros quanto para o mundo que nos observa.
Mais detalhes: Relatório do Ministro ALEXANDRE DE MORAES / ONG americana acusa Moraes de violar LGPD na apuração sobre os atos de 8 de janeiro – Jornal Cidade RC / Entidade dos EUA acusa Moraes de violar a LGPD na apuração do 8/1 / Mensagens vazadas expõem “justiça paralela” de Moraes no 8/1 / Ataques de 8 de janeiro em Brasília – Wikipédia, a enciclopédia livre / Supremo Tribunal Federal / Leia a cronologia dos desdobramentos do 8 de Janeiro / CPMI – 8 de Janeiro – Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos Atos de 8 de Janeiro de 2023 – Atividade Legislativa – Senado Federal / Asfav promove fórum contra violações de direitos após o 8/1 | Metrópoles / Inquérito 4.879.pdf / Roman Protasevich – Wikipedia / Donald Rumsfeld – Wikipédia, a enciclopédia livre / Operação Lava Jato – Wikipédia, a enciclopédia livre / Toffoli nega mais um pedido para anular atos da Lava Jato / Entenda o caso — Caso Lava Jato (MPF) / A morte da Lava Jato e o enterro da justiça anticorrupção no Brasil / Linha do Tempo da Lava Jato – Todos os passos da operação – G1 Política / 10 anos de Lava Jato: fatos e resultados da operação que mudou a política brasileira – SBT News / STJ rejeita pedido do MPF e anula ação da ‘lava jato’ por ordem do Supremo / O que o STF já anulou da Lava Jato? Relembre / Por 3 a 2, STF mantém decisão de Toffoli que anulou condenações de Leo Pinheiro na Lava Jato | Política | G1 / Quinta Turma segue STF e anula provas contra réus na Lava Jato / ‘Censura à liberdade de expressão justifica sanção a Moraes’, diz advogado de Trump | Brasil 247 / Elon Musk questiona Moraes: ‘por que tanta censura no Brasil?’ e ameaça fechar escritório no Brasil – Estadão / Modelo brasileiro de censura avança na América Latina / Câmara dos EUA divulga relatório e fala em ‘censura’ no Brasil /