Burkina Faso, conhecido como a “Terra do Povo Íntegro”, raramente aparece nas manchetes brasileiras, mas vive hoje uma transformação política profunda — e que não pode ser ignorada. Encravado no coração do Sahel, sem saída para o mar e longe dos centros de poder global, o pequeno país africano tem uma história marcada por revoluções, golpes, resistência ao colonialismo e uma luta contínua por soberania, estabilidade e desenvolvimento.
Nos últimos anos, Burkina Faso passou a ocupar um papel mais visível em um tabuleiro geopolítico em reconfiguração, sobretudo após o golpe liderado por Ibrahim Traoré em 2022. Este artigo percorre os principais marcos históricos do país, detalha a situação política atual e analisa como essa nova fase está sendo percebida pelo mundo.
História de Burkina Faso

Período Pré-Colonial e Colonial
Antes da colonização, o território que hoje é Burkina Faso era habitado por diversos grupos étnicos, como os Mossi, que formaram reinos poderosos e organizados, como o Reino de Ouagadougou. No final do século XIX, a região foi colonizada pela França, sendo incorporada à colônia do Alto Volta em 1919. Durante o período colonial, a economia foi estruturada para beneficiar os interesses franceses, com exploração de recursos e trabalho forçado.
A independência foi conquistada em 5 de agosto de 1960, quando o Alto Volta se tornou uma nação soberana. No entanto, a herança colonial deixou um país economicamente dependente e politicamente instável, com instituições frágeis e forte influência francesa.
Era Pós-Independência e Thomas Sankara
Após a independência, Burkina Faso enfrentou uma série de golpes militares. O mais notável foi o golpe de 1983, liderado por Thomas Sankara, um jovem militar carismático que renomeou o país para Burkina Faso, significando “Terra do Povo Íntegro” nas línguas locais Moore e Dioula. Sankara implementou reformas socialistas, promovendo educação, saúde, igualdade de gênero e autossuficiência econômica. Sua visão pan-africanista e anti-imperialista desafiou as potências ocidentais, mas seu governo terminou tragicamente em 1987, quando foi assassinado em um golpe liderado por Blaise Compaoré, seu ex-aliado.
Compaoré governou por 27 anos, mantendo um regime autoritário com apoio ocidental, especialmente da França. Sua administração foi marcada por estagnação econômica e desigualdades, culminando em sua deposição em 2014, após protestos populares contra sua tentativa de mudar a constituição para permanecer no poder.
Instabilidade Recente e a Insurgência Jihadista
Desde 2015, Burkina Faso enfrenta uma crescente insurgência jihadista, com grupos ligados à Al-Qaeda e ao Estado Islâmico operando nas regiões norte e leste, próximos às fronteiras com Mali e Níger. Esses ataques causaram milhares de mortes e deslocaram cerca de 2 milhões de pessoas, agravando a crise humanitária no país. A incapacidade do governo civil de Roch Marc Christian Kaboré (2015-2022) em conter a violência levou a um golpe militar em janeiro de 2022, liderado por Paul-Henri Sandaogo Damiba.
Damiba, no entanto, também falhou em melhorar a segurança, o que abriu caminho para um segundo golpe em setembro de 2022, liderado pelo capitão Ibrahim Traoré, então com 34 anos, tornando-o o chefe de Estado mais jovem do mundo.
O Golpe de Ibrahim Traoré e a Situação Atual
Contexto do Golpe
Em 30 de setembro de 2022, Ibrahim Traoré, um capitão do exército, liderou um golpe que depôs Damiba, acusando-o de não cumprir as promessas de combater a insurgência jihadista. Traoré, que integrava o Movimento Patriótico para a Salvaguarda e Restauração (MPSR), dissolveu o governo, suspendeu a constituição e assumiu o cargo de presidente interino. O golpe foi motivado pela frustração de jovens oficiais com a deterioração da segurança e a corrupção percebida no governo anterior.
Traoré, formado em geologia e com experiência em operações contra jihadistas no norte do país, rapidamente consolidou seu poder. Ele prometeu priorizar a segurança e promover uma “reconquista territorial” contra os grupos armados. Sua administração também adotou um discurso fortemente anti-imperialista, rompendo laços militares com a França em 2023 e expulsando tropas francesas do país.
Medidas do Governo Traoré
Sob Traoré, Burkina Faso implementou reformas significativas, como a nacionalização de minas de ouro, a criação da Burkinabé Gold Factory para refinar ouro localmente e auditorias em contratos de mineração com multinacionais. Essas medidas visam aumentar a receita estatal e reduzir a dependência econômica do Ocidente. Além disso, Traoré fortaleceu laços com países como Rússia, China e Irã, buscando parcerias que respeitem a soberania nacional. A formação da Aliança dos Estados do Sahel (AES) com Mali e Níger, após a saída desses países da CEDEAO em janeiro de 2025, reflete um movimento regional de integração militar e econômica com discurso anticolonialista.
Apesar dessas iniciativas, a segurança permanece um desafio. Relatórios indicam que o número de mortos por ataques terroristas triplicou desde que Traoré assumiu o poder, com um massacre em 2024 em Barsalogho deixando cerca de 600 mortos, um dos piores da história recente da África. Críticas apontam para a falta de proteção a civis e a deterioração da disciplina militar, com relatos perturbadores de abusos por parte de soldados.
Tentativas de Golpe Contra Traoré
O governo de Traoré enfrentou várias tentativas de golpe, incluindo uma em setembro de 2023 e outra em abril de 2025, esta última supostamente apoiada pela Costa do Marfim. Essas tentativas envolveram militares descontentes e, em alguns casos, colaboração com grupos terroristas, visando desestabilizar o regime. A junta militar respondeu com prisões de oficiais e reforço da segurança na capital, Ouagadougou. Traoré acusou potências ocidentais e países vizinhos, como a Costa do Marfim, de orquestrar essas conspirações, intensificando tensões regionais.
Situação Atual
Em maio de 2024, Traoré estendeu seu mandato por mais cinco anos, adiando as eleições previstas para julho de 2024, argumentando que a segurança é a prioridade. Essa decisão gerou críticas de organizações regionais e internacionais, que apontam um retrocesso democrático na região do Sahel. Apesar disso, Traoré mantém forte apoio popular, especialmente entre jovens, devido a suas reformas e discursos inflamados contra o neocolonialismo. Mais de 50 mil voluntários civis ingressaram na força de defesa territorial, refletindo o respaldo popular.
A crise humanitária persiste, com milhões de deslocados e uma economia fragilizada. A saída das forças francesas e americanas, aliada à redução da presença de mercenários russos do grupo Wagner, criou um vácuo de segurança que os jihadistas têm explorado. No entanto, a construção de uma refinaria de ouro e investimentos em infraestrutura, com apoio de parceiros como a China, sinalizam esforços para fortalecer a economia.
Visão Mundial sobre Ibrahim Traoré e Burkina Faso
A ascensão de Traoré e suas políticas anti-imperialistas geraram reações mistas globalmente. Ele é celebrado por movimentos pan-africanistas e setores progressistas como um líder que desafia a exploração ocidental, sendo comparado a figuras como Thomas Sankara e Che Guevara. Seus discursos, que viralizam nas redes sociais, inspiram a juventude africana com mensagens como “nosso ouro não servirá mais para enriquecer bancos suíços”. A criação da AES e a aproximação com a Rússia e a China são vistas como passos rumo à soberania regional.
Por outro lado, potências ocidentais, como França e Estados Unidos, expressam hostilidade, criticando a ruptura com acordos militares e a extensão do mandato de Traoré. A União Europeia, a ONU e a CEDEAO condenaram os golpes de 2022 e a suspensão da democracia, exigindo um retorno à ordem constitucional. A mídia ocidental frequentemente retrata Traoré como uma figura controversa, destacando o aumento da violência jihadista e alegações de abusos de direitos humanos, incluindo relatos de canibalismo por soldados, embora tais acusações sejam contestadas como propaganda.
Nas redes sociais, Traoré é alvo de desinformação, com vídeos falsos gerados por IA, como um que o mostrava ameaçando o presidente brasileiro Lula, amplificando narrativas negativas. No entanto, o apoio popular em Burkina Faso e em países como Gana e Quênia, onde multidões saíram às ruas em solidariedade após tentativas de golpe, demonstra sua influência regional.
A história de Burkina Faso reflete uma luta contínua contra a herança colonial, a instabilidade política e as ameaças à segurança. O golpe de Ibrahim Traoré em 2022 marcou um ponto de inflexão, trazendo esperança de soberania e desenvolvimento, mas também desafios significativos, como a escalada da violência jihadista e tensões internacionais. Sua liderança, embora controversa, ressoa como um símbolo de resistência pan-africanista, inspirando debates sobre o futuro da África em um mundo multipolar. Enquanto Traoré busca reescrever o destino de Burkina Faso, o país permanece no epicentro de uma transformação geopolítica que pode redefinir o Sahel e além.
Mais detalhes: História de Burquina Fasso / Burkina Faso | Coup, Map, Capital, Flag, Government, & History | Britannica / Líder anti-imperialista em Burkina Faso, Traoré se destaca na África | Agência Brasil / Quem é Ibrahim Traoré, presidente de transição do Burkina Fasso / Burkina Faso sofre segundo golpe militar em oito meses | Mundo | G1/ A geopolítica por trás dos golpes em Burkina Faso – Nexo Jornal / Saiba quem é Ibrahim Traoré, o homem que está mudando a geopolítica da África | Brasil 247 / Observatório de Crises Internacionais