Quando eu li “Parceiros Improváveis”, de Julian Gewirtz, uma coisa ficou clara para mim: a relação entre a China e os Estados Unidos durante a abertura do mercado chinês é, no mínimo, surpreendente. Quem poderia imaginar que duas nações com ideologias tão opostas — uma comunista, outra capitalista — se tornariam aliadas em um dos processos de transformação econômica mais marcantes do século XX?
O livro (você pode compra-lo aqui) revela detalhes fascinantes sobre como a China, um país fechado e governado por um regime comunista, decidiu abrir sua economia ao mundo, com o apoio crucial dos Estados Unidos. O que começou como uma estratégia pragmática da China para sobreviver economicamente, acabou moldando as bases da potência econômica global que conhecemos hoje. Mas como isso realmente aconteceu? Quais foram os acordos que pavimentaram esse caminho? E por que os EUA decidiram apostar nessa abertura?
A China no Final dos Anos 1970: O Início da Abertura
Para entender essa relação “improvável”, temos que voltar no tempo, especificamente para o final dos anos 1970. A China, sob o comando de Deng Xiaoping, enfrentava uma série de desafios internos. A Revolução Cultural havia deixado a economia em frangalhos, e o país precisava desesperadamente de reformas. Foi quando Deng tomou a ousada decisão de abrir o mercado chinês para o mundo. E quem poderia ajudar nesse processo? Os Estados Unidos.
Ao assumir o poder, Deng Xiaoping percebeu que a China, após décadas de isolamento econômico e políticas rígidas, estava atrasada em relação ao resto do mundo. Ele entendeu que a sobrevivência do Partido Comunista e a estabilidade da China dependiam da capacidade de modernizar a economia. Para isso, o governo chinês precisava de capital estrangeiro, tecnologia avançada e conhecimento de gestão industrial.
Mas, como implementar reformas capitalistas sem perder o controle político? Deng adotou uma abordagem pragmática e gradual. Ele evitou uma ruptura completa com o sistema comunista, optando por uma “economia socialista de mercado”. O slogan “enriquecer é glorioso” exemplificava bem essa nova mentalidade.
Em 1978, o governo chinês lançou a política das Quatro Modernizações, que focava em quatro áreas principais: agricultura, indústria, ciência e tecnologia, e defesa nacional. O objetivo era usar essas áreas para impulsionar o crescimento econômico e, ao mesmo tempo, manter o controle estatal sobre setores estratégicos. Esse movimento foi fundamental para atrair investimentos estrangeiros e permitir que a China se tornasse um polo de manufatura global.
A decisão de Deng de implementar uma “economia socialista de mercado” foi, na época, revolucionária. Em vez de seguir a cartilha socialista rígida de Mao, ele decidiu que a China precisava se integrar ao mercado global. Mas, por que os Estados Unidos, no auge da Guerra Fria, topariam ajudar um país comunista a fortalecer sua economia?
Os Acordos Entre China e EUA: Economia e Política se Encontram
Aqui entra o fator estratégico. Os EUA, sob a presidência de Jimmy Carter, viam na China uma oportunidade para enfraquecer a União Soviética, que era seu maior adversário geopolítico na época. Um acordo com a China poderia equilibrar a balança de poder na Guerra Fria. Em 1979, o presidente Carter e Deng Xiaoping formalizaram as relações diplomáticas entre os dois países, criando um marco para a cooperação econômica.
Esse movimento foi seguido por uma série de acordos comerciais, que incluíam investimentos americanos em solo chinês e transferência de tecnologia. No início dos anos 1980, as duas nações começaram a compartilhar conhecimento em áreas estratégicas, como agricultura, tecnologia e manufatura. Conforme Gewirtz explica no livro, não se tratava apenas de acordos comerciais; os Estados Unidos ajudaram a China a desenvolver políticas industriais e a criar um ambiente mais favorável ao mercado.
E é aqui que as coisas ficam realmente interessantes. Por que os EUA, um país que sempre defendeu a democracia e o capitalismo, decidiram ajudar uma China comunista a modernizar sua economia e indústria? Será que foi apenas uma jogada para conter a URSS, ou havia um interesse econômico de longo prazo?
Política Industrial Chinesa: O Crescimento Acelerado
A China rapidamente se aproveitou desse apoio americano e da sua política industrial bem planejada. Deng sabia que, para fazer a China crescer, precisaria de investimentos estrangeiros e de tecnologia avançada, algo que os EUA estavam dispostos a oferecer em troca de abertura de mercado.
A criação de Zonas Econômicas Especiais, como Shenzhen, permitiu à China atrair empresas multinacionais, oferecendo incentivos fiscais e um ambiente regulatório favorável. Esses investimentos estrangeiros deram início a um crescimento econômico que rapidamente tirou milhões de pessoas da pobreza e começou a transformar a China em uma potência industrial.
As Zonas Econômicas Especiais: O Motor da Abertura
Uma das decisões mais estratégicas de Deng Xiaoping foi a criação das Zonas Econômicas Especiais (ZEEs). As ZEEs foram a ferramenta-chave para atrair investimentos estrangeiros, e sua criação foi um marco no processo de abertura da economia chinesa.
As primeiras Zonas Econômicas Especiais foram criadas em 1980, em quatro localidades costeiras: Shenzhen, Zhuhai, Shantou (todas na província de Guangdong, próxima a Hong Kong) e Xiamen (na província de Fujian). Essas zonas foram escolhidas estrategicamente por estarem localizadas próximas a regiões com histórico de comércio, como Hong Kong e Taiwan, facilitando a atração de investidores estrangeiros, especialmente da diáspora chinesa.
Mas o que tornava essas zonas tão atraentes? As Zonas Econômicas Especiais ofereciam uma série de vantagens:
Incentivos fiscais, como isenções e reduções de impostos para empresas estrangeiras.
Infraestrutura moderna, financiada pelo governo, para facilitar a operação de indústrias de exportação.
Flexibilidade regulatória, permitindo que empresas operassem com menos interferência burocrática do que em outras regiões da China.
Facilidade de repatriação de lucros, algo que muitas empresas estrangeiras valorizavam.
O modelo foi tão bem-sucedido que, em 1984, o governo chinês expandiu o conceito para 14 cidades costeiras, incluindo Xangai, Tianjin e Guangzhou. Hoje, as ZEEs continuam a ser motores econômicos importantes, e Shenzhen, que começou como uma vila pesqueira, é agora um dos principais polos tecnológicos e financeiros do mundo.
Entre 1980 e 1990, a economia chinesa cresceu em média 9,5% ao ano, algo praticamente inédito no mundo na época. Isso foi possível graças à combinação de uma força de trabalho barata e disciplinada, com um fluxo contínuo de investimentos estrangeiros, especialmente americanos. E não se tratava apenas de capital financeiro, mas também de transferência de tecnologia, que ajudou a modernizar fábricas, infraestrutura e até o setor militar chinês.
A abertura do mercado permitiu que a China começasse a desenvolver sua indústria de alta tecnologia, algo que teria sido impensável antes das reformas de Deng. A entrada de empresas multinacionais trouxe não apenas capital, mas também a transferência de tecnologia — essencial para que a China acelerasse seu desenvolvimento industrial.
Nos anos 1980 e 1990, empresas de tecnologia dos Estados Unidos, Japão e Europa começaram a investir em massa na China, aproveitando a mão de obra barata e as condições favoráveis das ZEEs. Essas empresas não apenas montavam produtos na China, mas também começaram a estabelecer centros de pesquisa e desenvolvimento no país.
Um dos setores que mais se beneficiou foi o de eletrônicos e telecomunicações. Empresas como Huawei e ZTE, que hoje são gigantes globais no setor de telecomunicações, começaram nesse período de abertura. A Huawei, fundada em 1987, começou como uma pequena empresa que vendia equipamentos de telecomunicações, mas com o tempo, aproveitou as políticas de incentivo à inovação e tornou-se uma das principais fornecedoras de infraestrutura de telecomunicações do mundo.
Outra empresa importante é a Lenovo, fundada em 1984 como “Legend”, uma pequena empresa de computação. Hoje, a Lenovo é uma das maiores fabricantes de computadores do mundo, com presença global consolidada. O sucesso dessas empresas não seria possível sem a abertura econômica iniciada por Deng, que permitiu o acesso ao mercado internacional e a oportunidade de aprender com gigantes estrangeiros.
Os Nomes que Moldaram Essa Relação
Do lado americano, figuras como o ex-secretário de Estado Henry Kissinger tiveram um papel crucial no estabelecimento dessa cooperação. Kissinger, que já havia negociado a reaproximação entre China e EUA no início dos anos 1970, durante o governo de Nixon, continuou sendo uma voz influente nas relações sino-americanas. Ele entendia que abrir espaço para a China no cenário global poderia ser uma maneira de equilibrar o poder durante a Guerra Fria.
Do lado chinês, Deng Xiaoping foi, sem dúvida, a figura central desse processo. Sua visão pragmática e ousadia em romper com o passado comunista de Mao Zedong fizeram com que a China adotasse práticas capitalistas, sem perder o controle do Partido Comunista. Ele acreditava firmemente que a China precisava “enriquecer primeiro” antes de pensar em qualquer outra mudança.
E Hoje? Como Essa Relação Evoluiu?
Agora, refletindo sobre a China atual, é interessante perceber o quanto esses acordos do passado moldaram o presente. A China é hoje a segunda maior economia do mundo, e a relação entre os EUA e a China evoluiu para algo muito mais complexo. O que antes parecia uma parceria estratégica, hoje é marcado por uma competição intensa, especialmente em áreas como tecnologia e comércio.
Os EUA incentivaram investimentos de suas empresas na China, acreditando que uma China economicamente mais forte seria um contrapeso ao poder soviético. Foi uma jogada geopolítica que, ao mesmo tempo, gerava lucros para as empresas americanas e fortalecia a posição dos EUA no tabuleiro internacional.
Os acordos bilaterais de comércio entre os dois países foram cruciais nesse processo. Entre 1979 e 1989, o comércio bilateral entre EUA e China cresceu exponencialmente. A China oferecia um mercado com enorme potencial de consumo, enquanto os EUA forneciam capital e tecnologia. Ao longo dos anos, essa relação se tornou uma via de mão dupla — enquanto a China se tornava a “fábrica do mundo”, os EUA se beneficiavam de produtos de baixo custo, o que, por sua vez, contribuía para a globalização da economia.
A mesma China que foi beneficiada pela transferência de tecnologia americana agora rivaliza com os EUA no campo da inovação, com gigantes como Huawei e Alibaba liderando setores chave. Será que os EUA, ao ajudar a China, acabaram criando seu maior rival econômico? É uma questão intrigante.
O Direito Internacional e as Implicações Econômicas
Do ponto de vista do direito internacional, essa cooperação entre China e EUA criou um precedente interessante. A China, que antes era vista como uma nação isolada, tornou-se um membro ativo da economia global. A entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001 foi o auge desse processo, consolidando sua posição como uma potência comercial.
Mas, à medida que a China crescia, também surgiam questionamentos sobre práticas comerciais desleais, como subsídios estatais e manipulação cambial. Será que a China jogou com as regras estabelecidas ou apenas se aproveitou das brechas do sistema global?
Conclusão: Um Paradoxo Geopolítico?
A história da abertura da China ao mundo com o apoio dos EUA é um dos maiores paradoxos geopolíticos do último século. O que começou como uma aliança improvável, transformou-se em uma rivalidade global. O que me faz questionar: será que os Estados Unidos subestimaram a ambição e a capacidade da China de se reinventar?
O que Gewirtz deixa claro em “Parceiros Improváveis” é que a abertura da China ao mundo não foi um acaso, mas o resultado de decisões estratégicas, tanto por parte de Pequim quanto de Washington. As políticas adotadas plantaram as sementes que possibilitaram o crescimento econômico exponencial da China nas décadas seguintes.
Hoje, vemos o resultado desse planejamento: uma China que lidera setores chave da economia global, como tecnologia, manufatura e inovação. A decisão de abrir o mercado, que parecia arriscada na época, provou ser uma jogada genial que redefiniu o papel da China no mundo.
No final das contas, o que parece claro é que essa parceria improvável entre China e EUA moldou profundamente o século XXI e continua sendo um dos principais eixos de poder da política internacional.
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