Você lembra da Primavera Árabe? Sabe como ela impactou o Oriente Médio e o Norte da África? Entre 2010 e 2011, milhões de pessoas saíram às ruas exigindo mudanças. Mas será que esses protestos trouxeram a transformação que prometiam? Ou acabaram mergulhando a região em novos conflitos?
Neste texto, vamos explorar o que levou à explosão dessa onda de revoltas, o que aconteceu durante os protestos e, principalmente, o que restou depois que o fervor inicial se dissipou.
Como tudo começou?
O mundo árabe, durante décadas, foi uma região marcada por governos autoritários. Ditadores como Zine El Abidine Ben Ali, na Tunísia, Hosni Mubarak, no Egito, e Muammar Gaddafi, na Líbia, governavam seus países com mãos de ferro. Liberdade de expressão? Nem pensar. Corrupção? Era regra do jogo. E a economia? Para a elite, sempre tinha um banquete; para o resto, migalhas.
Aí, em dezembro de 2010, um simples ato de desespero colocou fogo na lenha que já estava seca. Mohamed Bouazizi, um vendedor de frutas na Tunísia, ateou fogo ao próprio corpo em protesto contra os abusos das autoridades e a falta de oportunidades. O que parecia ser um caso isolado desencadeou uma onda de protestos que se espalhou como pólvora por todo o mundo árabe.
E não era só por causa de ditadores. As pessoas estavam cansadas de tanta desigualdade, desemprego e falta de perspectivas. Afinal, quem aguenta viver num lugar onde há tanto potencial, mas onde o futuro parece sempre um beco sem saída? Foi assim que surgiram protestos na Tunísia, no Egito, na Líbia, na Síria e em outros países. A mensagem era clara: chega! Mas será que essa mensagem foi mesmo entendida?
A primavera árabe e seus ventos de mudança
No começo, parecia que estávamos testemunhando algo histórico. Em 2011, Ben Ali fugiu da Tunísia, Mubarak foi deposto no Egito, e Gaddafi encontrou um fim trágico e cinematográfico na Líbia. Era como se os ventos da democracia finalmente tivessem chegado a uma região marcada por décadas de estagnação política. Mas aí veio a pergunta que poucos estavam preparados para responder: e agora? Após o sucesso de uma queda de regime autoritário, quem governaria? Em quem confiar?
No Egito, por exemplo, a queda de Mubarak abriu espaço para um governo liderado pela Irmandade Muçulmana. Parecia uma vitória democrática, mas a gestão foi tão polarizadora que acabou resultando em outro golpe militar, liderado por Abdel Fattah el-Sisi. Ou seja, o Egito saiu de uma ditadura e… voltou para outra, só que com uma roupagem nova.
E aí surge uma questão que ninguém gosta muito de encarar: será que a democracia é mesmo o modelo certo para todos os lugares? Essa pergunta não é nova. Pensadores como Fareed Zakaria já levantaram o debate sobre o que ele chama de “democracias iliberais”, onde eleições são realizadas, mas sem garantias de direitos básicos e liberdade. No Oriente Médio, onde o tribalismo, o islamismo político e as estruturas autoritárias têm raízes profundas, será que faz sentido insistir em exportar o modelo ocidental de democracia? Será que um sistema com eleições, mas sem instituições sólidas, é realmente eficaz ou só agrava o caos?
Os Estados Unidos e a exportação da democracia
E não dá para falar desse assunto sem mencionar os Estados Unidos. Desde o fim da Segunda Guerra, Washington abraçou a ideia de que espalhar a democracia pelo mundo é uma missão quase divina. Durante a Primavera Árabe, muitos na Casa Branca acreditaram que estavam vendo o florescimento de uma nova era democrática. Mas será que foi isso mesmo?
Os EUA apoiaram algumas transições, mas, ao mesmo tempo, ficaram em cima do muro em casos como o da Arábia Saudita, um aliado estratégico e absolutamente não-democrático. Essa contradição não passou despercebida por outras grandes potências, como China e Rússia, que não perdem a chance de criticar o que chamam de “imposição de valores ocidentais”. Para eles, o que os Estados Unidos chamam de “exportação de democracia” muitas vezes parece mais com uma forma de proteger seus próprios interesses geopolíticos.
A ironia é que em muitos casos, o apoio dos EUA a movimentos democráticos acabou criando instabilidade, que, por sua vez, favoreceu o aumento da influência dessas potências rivais na região. A Síria é um exemplo clássico: enquanto os EUA apoiavam algumas facções rebeldes, a Rússia entrou em cena para sustentar Bashar al-Assad. O resultado? Uma guerra civil devastadora e um campo de batalha para disputas globais.
E a economia?
Antes da Primavera Árabe, muitos desses países já estavam com problemas. Alto desemprego, dependência de exportação de petróleo e gás, e pouca diversificação econômica. Depois dos protestos? Bem, vamos dizer que não melhorou muito. No Egito, o turismo, que era uma das principais fontes de renda, despencou. Na Síria, a guerra civil destruiu boa parte da infraestrutura do país, e na Líbia, a produção de petróleo virou alvo constante de disputas.
A Tunísia foi um dos poucos casos em que se viu alguma luz no fim do túnel. O país conseguiu avançar em termos democráticos, mas sua economia ainda enfrenta dificuldades. A transição política trouxe mais liberdade, mas não conseguiu resolver os problemas econômicos estruturais que levaram aos protestos em primeiro lugar. É como arrumar a sala enquanto o telhado continua com goteiras.
E a Síria?
Se eu tivesse que escolher o caso mais dramático da Primavera Árabe, seria a Síria. O país mergulhou em uma guerra civil que já dura mais de uma década. O regime de Bashar al-Assad, que parecia estar com os dias contados no início dos protestos, conseguiu se manter no poder graças ao apoio de aliados como a Rússia e o Irã. Por outro lado, grupos rebeldes também receberam apoio de potências como os Estados Unidos e países do Golfo.
E sabe o que aconteceu? A Síria virou palco de uma guerra por procuração (ja escrevemos sobre isso aqui) . Um campo de batalha onde interesses globais se cruzaram, deixando milhões de mortos, deslocados e um país em ruínas.
Então, o que restou?
Uma das grandes ironias da Primavera Árabe é que ela trouxe ainda mais complexidade para a já complicada geopolítica do Oriente Médio. Países como a Arábia Saudita e o Irã viram nos eventos uma oportunidade para expandir suas influências. A Turquia também tentou se posicionar como um modelo de democracia islâmica, mas, internamente, acabou enfrentando seus próprios desafios democráticos.
E o Ocidente? Bem, muitos países apoiaram os protestos inicialmente, mas logo ficaram divididos. A retirada de ditadores, que parecia um ganho para os direitos humanos, trouxe instabilidade. E instabilidade na região significava mais refugiados, mais terrorismo e mais tensão global. Foi um daqueles momentos em que a solução parecia pior que o problema.
A Primavera Árabe foi a prova de que o desejo por mudança existe, mas que construir algo novo é muito mais complicado do que derrubar o velho. E a grande lição talvez seja essa: a democracia não é um modelo pronto para ser exportado. Ela precisa de raízes locais, de instituições fortes e de uma cultura que a sustente. No Oriente Médio, essa construção ainda está longe de terminar.
Fontes:
Extremo Oriente Médio, admirável mundo novo : a construção do Oriente Médio e a Primavera Árabe
ANÁLISE DA PRIMAVERA ÁRABE: um estudo de caso sobre a revolução jovem no Egito
A PRIMAVERA ÁRABE SOB O ENFOQUE DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS