O Bombardeio Aéreo Contra o Povo do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto
No coração do sertão cearense, na região do Cariri, a comunidade do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto floresceu como um exemplo de resistência, solidariedade e igualdade. Liderada pelo beato José Lourenço Gomes da Silva, a comunidade desafiou as estruturas de poder da época, mas pagou um preço alto por sua ousadia. Em 11 de maio de 1937, sob ordens do governo de Getúlio Vargas, centenas de camponeses, romeiros e descendentes de escravizados foram massacrados em um dos episódios mais trágicos e menos conhecidos da história brasileira, conhecido como o Massacre do Caldeirão. Este texto busca resgatar essa história silenciada, trazendo à tona a luta de um povo que sonhava com justiça social.
Origens do Caldeirão: Um Sonho de Igualdade
José Lourenço, nascido em Pilões de Dentro, Paraíba, era filho de escravos alforriados e um homem profundamente religioso. No final do século XIX, migrou para Juazeiro do Norte, onde conheceu o Padre Cícero Romão Batista, figura carismática que atraía multidões ao Ceará. Ganhando a confiança do padre, José Lourenço tornou-se beato e, em 1926, foi encarregado de liderar uma comunidade no Sítio Baixa Dantas, em Crato, onde a terra prosperou com o trabalho coletivo dos romeiros (link). Diferentemente das fazendas vizinhas, no Caldeirão a produção era dividida igualmente, promovendo uma sociedade igualitária baseada na fé e na solidariedade.
Após a venda do Sítio Baixa Dantas, Padre Cícero cedeu uma nova área, conhecida como Caldeirão dos Jesuítas, rebatizada pelos romeiros como Caldeirão de Santa Cruz do Deserto. A comunidade cresceu, abrigando até 2.000 pessoas no seu auge, incluindo flagelados da seca de 1932, uma das mais severas do Nordeste. Cada família tinha sua casa, e a produção coletiva sustentava a todos, com excedentes vendidos para comprar remédios e querosene (link). Havia uma igreja, um cemitério e até uma escola, todos construídos pelos próprios moradores, que viviam sob os princípios de partilha e espiritualidade (link).
O Conflito: A Ameaça aos Poderosos
A organização comunitária do Caldeirão incomodava os latifundiários e coronéis da região, que viam na comunidade uma ameaça à sua mão de obra barata. A elite local acusava os moradores de “fanatismo” e, mais tarde, de “comunismo”, em um contexto de paranoia anticomunista alimentada pelo governo de Getúlio Vargas durante o Estado Novo (1937-1945). A comunidade, que já havia enfrentado tensões, como o caso do Boi Mansinho – um animal supostamente venerado, esquartejado por ordem de Floro Bartolomeu (link) – tornou-se alvo de crescente hostilidade.
Em 11 de setembro de 1936, uma primeira invasão policial incendiou casas e expulsou moradores, mas a comunidade resistiu e se reorganizou. Contudo, um confronto com espiões enviados pelo governo, que resultou na morte do capitão José Bezerra e outros, serviu como pretexto para a repressão final. A imprensa cearense e as elites locais espalharam rumores de que o Caldeirão planejava invadir Crato, intensificando o medo de uma “nova Canudos” (link).
O Massacre: Um Crime Silenciado

Na madrugada de 11 de maio de 1937, a comunidade foi devastada por um ataque brutal. Duzentos soldados da Polícia Militar do Ceará, armados com fuzis e metralhadoras, e dois aviões enviados pelo ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, bombardearam o Caldeirão. Estima-se que entre 400 e 1.000 pessoas, incluindo mulheres, crianças e idosos, foram mortas. Muitos foram caçados na mata e decapitados por policiais e jagunços a serviço dos coronéis. Os corpos foram enterrados em uma vala comum, cuja localização permanece desconhecida, possivelmente no Caldeirão ou na Mata dos Cavalos, na Serra do Cruzeiro (link). O Exército Brasileiro e a Polícia Militar do Ceará negam o massacre até hoje, e nenhum registro oficial documenta o ocorrido (link).
José Lourenço escapou e fugiu para Pernambuco, onde morreu em 1946, vítima de peste bubônica. Seu corpo foi levado a Juazeiro do Norte e sepultado no cemitério do Socorro (link).
A Memória Amordaçada e a Luta por Justiça
O Massacre do Caldeirão permanece como uma das histórias mais silenciadas do Brasil, comparado por alguns ao genocídio de Canudos. A falta de registros oficiais e a negação das autoridades dificultam a busca pela verdade. Em 2008, a ONG SOS Direitos Humanos entrou com uma ação civil pública exigindo a localização da vala comum, a exumação dos corpos e indenizações às famílias, mas o processo foi arquivado. Em 2009, a ONG denunciou o Brasil à Organização dos Estados Americanos (OEA) por crime de desaparecimento forçado (link). Apesar disso, a justiça permanece distante.
A memória do Caldeirão é mantida viva pela Romaria da Santa Cruz do Deserto, realizada anualmente desde 2000, que reúne milhares de pessoas para homenagear as vítimas e resgatar a história de resistência. Em 2022, a área foi transformada em um parque estadual (link).
Legado do Caldeirão
O Caldeirão de Santa Cruz do Deserto foi mais do que uma comunidade religiosa; foi uma experiência de autogestão e solidariedade que desafiou o latifúndio e a exploração. Sua destruição reflete o autoritarismo de uma época que temia qualquer organização popular. Como destacou o secretário de Cultura do Crato, Amadeu de Freitas, “o Caldeirão foi massacrado por pura ignorância, mas é uma referência de como a sociedade pode se organizar de forma diferente” (link). Hoje, o Assentamento 10 de Abril, com 47 famílias, mantém vivo o sonho de José Lourenço, cultivando a terra de forma coletiva (link).
Essa história, apagada dos livros oficiais, é um lembrete da força do povo nordestino e de sua luta por justiça social. A Romaria, o futuro memorial e iniciativas como o documentário Caldeirão (1986), dirigido por Rosemberg Cariry (link), ajudam a garantir que o Caldeirão não seja esquecido.
Fontes:
- O Arquivo. Caldeirão de Santa Cruz do Deserto (link).
- Teia dos Povos. Memórias que Resistem: A Comunidade do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto (link).
- Geopark Araripe. Caldeirão de Santa Cruz do Deserto (link).
- Memorial da Democracia. Comunidade do Caldeirão é Massacrada (link).
- Aventuras na História. O Massacre do Caldeirão e o Boi Milagreiro [( (link).
- Wikipédia. Caldeirão de Santa Cruz do Deserto (link).
- Revista Esquinas. Quilombo Caldeirão: A Tentativa de Apagamento de um Povo Sertanejo (link).
- Academia.edu. O Estado Incendiou o Caldeirão: Um Estudo Acerca do Massacre do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto e a Responsabilização do Estado Brasileiro (link).
- Diário do Nordeste. Sítio Caldeirão, Palco de um dos Maiores Massacres do Brasil, Deverá Ganhar Memorial no Crato (link).
- AdoroCinema. Caldeirão (1986) (link).
- Repositório UFC. O Massacre do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto: Uma Análise da Legitimação da Violência e Autoritarismo (link).
- Lumina (UFJF). Memória Amordaçada: O Massacre do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto (link).
- Prefeitura do Crato. 23ª Edição da Romaria do Caldeirão Santa Cruz do Deserto Acontece no Domingo, 24 (link).